terça-feira, agosto 22, 2006

O VENDEDOR DE SONHOS
"Dreams" Rafael Gallardo
-Que tempo de um raio!-reagiu ele, intempestivamente, ao dilúvio que desabava na avenida.
Aborrecia-se profundamente com o exílio forçado, ali, junto à escadaria que acedia ao casino. Uma escadaria larga, imponente, faustosa. Um acesso incerto ao jogo da sorte ou do azar. Uma subida feita de sonho e esperança, talvez a última. E de muitas e penosas descidas.
Pensando bem, seria um local estratégico para um cauteleiro. Para que procurar a sorte mais acima, se ele a oferecia muito mais abaixo e a preço de saldo.
Paradoxalmente, poucos respondiam à sua proposta. Preferiam a ambiência, o sabor a aventura e risco, o ruído, a vertigem mais perto do céu.
-Que tempo lixado!
A humidade colava-se, incómoda, ao frio lagedo do átrio. Estirado no chão, ele conferia as cautelas mais uma vez. Era fim de tarde e ele ainda não vendera nenhuma. Dia azarado.
Não é que isso lhe importasse grande coisa. Convivia com o azar há tanto tempo que se tinham tornado inseparáveis.
-Vou tentar arranjar uns cartões. Darão jeito, à noite.-E ela saiu à procura, ligeira, quase uma sombra.
Afinal era o que eles eram, duas sombras. Ele já não se lembrava de quando nem de onde a conhecera. Algures num daqueles recantos mais sombrios da cidade, locais demarcados dos esquecidos da fortuna. Tão pouco sabia o seu nome. Tão pouco lho perguntara. No entanto, tornaram-se parceiros e cúmplices naquele simulacro de vida. O passado, tacitamente, não existia. O futuro era para eles de uma clareza invulgar, imune a projectos ou expectativas.
Por isso viviam apenas o presente. Um momento de cada vez. Variavam de poiso, quando lhes apetecia. Viviam das sobras, nas franjas de uma comunidade selectivamente cega, mas não menos solitária.
-Maldita chuva!
Odiava aquelas gotas grossas e frias que lhe coartavam a liberdade. A liberdade de apregoar a sorte para aqueles que a podiam e queriam comprar. Já transportara entre mãos quantias fabulosas, que alteraram drasticamente vidas de desconhecidos. Encolheu os ombros, indiferente.
Sentia-se livre, no seu sentido literal e absoluto. Não obedecia a regras. Não aceitava compromissos. Não fazia concessões à vida. Vivia, pura e simplesmente.
Olhava, enfastiado, para a tarde inesperadamente brumosa daquele Agosto.
Afinal, o cartão seria benvindo.