quarta-feira, dezembro 28, 2005

DOZE PASSAS; DOZE DESEJOS

1- Que os Estados Unidos vão dar uma volta ao bilhar grande e gostem;
2 - Que o governo peça um licença sem vencimento pelo prazo do mandato que lhe resta, a gozar no nordeste brasileiro ou em qualquer outro destino, à escolha, sem restrições;
3- Que deixem os professores educar;
4- Que deixem os juízes julgar;
5- Que deixem os médicos e outros profissionais tratar-nos da saúde (sem ironia);
6- Que os economistas trabalhem mais e falem menos;
7- Que os jornalistas sigam o exemplo dos Estados Unidos;
8- Que os comentadores padeçam, oportunamente, de lapsos de voz, sem comprimidos à mão;
9- Que se lixe o défice;
10-Que surjam verdadeiros empresários na nossa praça;
11- Que se deslocalizem todas as multinacionais para a Ilha da Páscoa, mas antes dela;
12-Que se ofereça o mercado às nossas pequenas e médias empresas, quanto mais pequenas e médias melhor.

Um sonho do Monge

quarta-feira, dezembro 21, 2005

Sonho Marinheiro
Queria ele partir, feito marinheiro,
Da banda de cá, de uma qualquer margem,
Peito feito ao vento, afoito pioneiro,
Sem destino certo, ao sabor da aragem.
Realidade ou sonho, queria ele vogar,
Num gesto seguro, mão ferrada ao leme,
De lábios cerrados, com sabor a mar,
Dono e senhor, que ele ama e teme.
Derradeiro adeus à última gaivota,
Ilhota perdida na imensidão,
Sem olhar para trás, vai traçando a rota,
Com crua certeza fincada na mão.
Naquela deriva vai esquecendo histórias,
Sombras de passado que escreveram Vida,
Conscientemente, apaga memórias
De uma outra rota, por ele percorrida.
O Monge

quarta-feira, novembro 30, 2005

ERGUE-TE E SORRI

Quando o mundo em redor
Desaba em cruas trevas
Escuras manchas de dor
Feridas que já não toleras
Ergue-te e sorri.

Quando o sentimento
Parece coisa vã e sem sentido
Fragmento obscuro
De um mundo perdido
Ergue-te e sorri.

Quando aquilo em que acreditas
Farol irradiante e camarada
Parece esboroar-se num nada
Somatório infindo de desditas.
Ergue-te e sorri.

Quando a vontade se te desfalece
Quando um torpor insidioso
Se torna fatal de tão perigoso
Gume acerado que a alma arrefece.
Ergue-te e sorri.

Quando asfixias
Na atmosfera fétida
De um mundo-cão
Que a tudo te diz não
Ergue-te e sorri.

Quando acreditas
Que a ética morreu
Que, num derradeiro suspiro,
Esfíngica, desfaleceu
Ergue-te e sorri.

Afinal tu és o Homem,
Exemplo acabado da Criação,
És uma ode, uma oração,
Uma obra de arte de Suprema Mão.

Protege o teu orgulho,
Realça a obra feita,
E nunca a desdenhes,
Por a achares imperfeita.

Páginas sulcaste
Com maço e escopro,
Na pedra fria
da Vida chamada
Teu nome marcaste
Dia após dia
Jornada a jornada.

Ao olhares o passado
O caminho traçado
Ganha ânimo e parte
Enfrenta, renovado,
O senão do teu fado
Com estilo, com arte
Ergue-te e sorri.

O MONGE

sexta-feira, novembro 18, 2005

A Aprendiz de Feiticeiro

O Monge pasma! Necessariamente este governo está pejado de pessoas com sintomatologia patológica diversificada. Citamos desde já o problema oftalmológico grave classificado como "vistas curtas". Ministros, secretários de estado e restante corte governamental, padecem de uma enfermidade que não lhes permite enxergar para além dos limites estreitos dos seus calafetados e blindados gabinetes. Para além disso, assumem como exclusivo o seu limitado ponto de vista, o que constitui uma manifestação extrema e perigosa de um ego exacerbado.
Poderíamos supor que, como alternativa, esta estreiteza de horizontes seria compensada por um acréscimo de mobilidade que lhes permitisse o contacto próximo com a realidade de intervenção. Mas não, os nossos governantes sofrem, neste aspecto, de manifesta incapacidade motriz, a qual se restringe à autonomia das suas acolchoadas cadeiras de executivos. Como se isto não bastasse, padecem de uma espécie peculiar de autismo, que cerceia a sua capacidade de diálogo e interacção com o exterior.
Isso não lhes permite ver os sinais. Os sinais, cada vez mais nítidos, de uma sociedade crispada e revolta. Voluntária ou involuntariamente constituem fonte evidente de um sem número de conflitos. E uma sociedade em conflito não produz, não cresce, não se desenvolve. Os governantes não devem ser o pólo do conflito, mas o instrumento da sua resolução.
Os sintomas atrás aludidos estão patentes na actuação da Ministra da Educação. Mostra um desconhecimento comprometedor do funcionamento do sistema educativo. Hostiliza intencionalmente os princípais artífices do acto educativo - os docentes. Não mobiliza vontades, desmotiva e exaspera. Semeia ventos e vai colher tempestades.
A manobra ignóbil de apresentar um denominado estudo do absentismo docente no próprio dia da greve é exemplo cru de uma profunda ausência de ética política. É descarada, despudorada e tão evidente que as pessoas desconfiam. Uma tão profunda ausência de escrúpulos vira-se necessariamente contra a aprendiz de feiticeiro. Tais argumentos só convencem quem quer ser convencido. Maquiavel chumbaria necessariamente a sua aluna na arte de fazer política. Seria muito mais subtil na estratégia, muito mais insidioso na acção, mais ponderado nas suas consequências.
Pois bem, senhora Ministra, a sua táctica poderá encontrar eco em cidadãos desprevenidos e menos esclarecidos. Mas esses cidadãos não serão peças-chave na construção de um sistema educativo que se pretende eficaz. Se quer melhorar o sistema educativo terá que ter os professores do seu lado e eles já estão definitivamente do outro lado da barricada. Há erros irreversíveis. Ao lançar o descrédito sobre os docentes, descredibiliza o sistema educativo. Um governante idóneo, bem intencionado e com sentido de Estado nunca cometeria tal erro. Penitencie-se, senhora Ministra. Retracte-se das injustiças cometidas. O Acto de Contrição deve ser longo e o uso do cilício recomenda-se. Para que em cada minuto se lembre da ponderação, da honestidade, do diálogo e do bom senso. Palavra do Monge.

terça-feira, outubro 25, 2005

As gralhas da rádio e o homem endeusado
De vez em quando o Monge houve rádio, assim como, de vez em quando, lê jornais e vê televisão. Já o fez com mais frequência, admite-o. Por vezes, o Monge preocupa-se com esta sua postura perante a comunicação social. Mas, após ligeira meditação terapêutica, voluntariamente remetido a locais de altitude e isolamento aconselháveis a tal actividade, reconheceu a origem de tal comportamento, aparentemente fora do vulgar. O que ele faz é psicologicamente considerado como uma atitude de auto-defesa contra uma espécie que, devido a intervenção irreflectida do Homem sobre o seu habitat natural, tem proliferado de forma inusitada: as gralhas da rádio.
O Monge tem tanto azar que, quando liga a sua frequência habitual, lá estão as citadas gralhas, com o seu grasnido arrepiante. Falam de tudo. Nada escapa ao seu vozear esganiçado. Menos a gripe das aves. Desta vez, a postura de auto-defesa é a delas. Pois não vão veterinários zelosos colocá-las de quarentena, ou usar metodologias mais drásticas e danosas da sua integridade física.
Pior que o comentário individual de uma destas gralhas, programado ao cronómetro, é uma conversa em família. Eles são gritos, gargalhadas, ditos pretensamente espirituosos, voláteis na sua superficialidade, parciais monólogos colectivos, de uma miopia reducionista que mete dó.
Eis que aconteceu a apresentação de um determinado candidato presidencial, no culminar de um tabu tão prolongado que deixou de o ser.
Pois não é que as citadas gralhas, pousadas em bando no costumado programa radiofónico, desatam a bajular desavergonhadamente o dito? Pois digo-vos que o Monge gargalhou sozinho como já há muito não o fazia.
O discurso da apresentação do candidato foi curto, repetitivo e pouco sumarento. É uma marca, um estilo, que advém, para um analista traquejado, de uma perspectiva social de vistas curtas, limitada doentiamente a uma abordagem exclusivamente económica e, para além disso, passível de crítica, mesmo no âmbito da disciplina em causa.
As gralhas da rádio, afinando bicos pelo mesmo diapasão, endeusaram o homem e o discurso. Conseguiram encontrar sentidos onde não os havia. Esgravataram projectos em nenhures. Técnicas geniais de engenharia publicitária foram aplaudidas na sobriedade do discurso. Corroboraram assim, implicitamente, uma estratégia especializada na arte do convencimento, da persuasão, da sugestão, para venda de um produto, desprezando uma fase tão importante como a do controlo da qualidade do conteúdo. Táctica errada. Coloca as pessoas na retranca. Elas querem um presidente autêntico, não um publicitário.
Para um ouvido crítico, distanciado, descomprometido, esta algaraviada unidireccional é simples ruído. Mas dá demasiado nas vistas e não abona em favor da antena em causa. Por favor, seleccionem os vossos comentadores. Apliquem o critério da excelência tão apregoado. Pugnem por uma autêntica meritocracia. Dêem uma sacudidela nos escrúpulos ambientais e ecológicos e sacudam, desalojem, deslocalizem as vossas gralhas. Mas não as deponham nos lugares de altitude e isolamento adequados à meditação transcendental do Monge. Poupem-no. Palavra do Monge.

terça-feira, setembro 13, 2005

A primeira lei de todo o ser é conservar-se, é viver.
Vós semeais cicuta e pretendeis ver amadurecer espigas!
Maquiavel
A iniludível animalidade do Homem
O Monge tem remoído os bizarros comportamentos do Homem, quer na sua individualidade, quer enquanto ser integrado em diversos grupos de pertença. Intriga-se, particularmente, com a sua tendência para sobrevalorizar atitudes egocêntricas, egoístas, em detrimento de valores tão essenciais como o da solidariedade, igualdade, respeito pela diferença, entre outros. Num relance pelos ditames da história, verifica que, ciclicamente, ocorrem períodos de crispação social que, frequentemente, culminam em ruptura social, com todas as desditas que lhes são consequentes. Algo, no Homem, o atrai compulsivamente para tais circunstâncias.
Daí a sua intenção, num exercício, semelhante ao do conhecido filósofo, de fazer tábua rasa dos conceitos e preconceitos que lhe infestam a mente, partindo da seguinte premissa: existo, logo, sou um animal. Chegou este vosso Monge a esta conclusão, dado não encontrar em si características que o incorporassem no reino vegetal, apesar de uma crescente tendência a assumir um estado de apática latência que o afastasse, temporariamente, dos desatinos invernosos que observa, dia após dia.
Ninguém contestará a óbvia natureza animal do Homem. O seu sistema límbico assim o atesta. Como animal que é, está sujeito à ditadura da sua estrutura genética. Esta empurra-o, inexoravelmente, para a luta pela sobrevivência. É nesta ambiência extremamente competitiva que ele se desenvolve e conforma. A sua sobrevivência como indivíduo é orientada para a soberana finalidade da reprodução. Isto significa que, sobrevivendo o indivíduo, sobrevive a espécie.
Por outro lado, o Homem é um animal gregário. Esta característica é uma importante apropriação evolutiva. Sozinho, as probabilidades de sobreviver são diminutas. Por isso, agregando-se, dota-se de maior capacidade de resposta face à impiedosa lei da selecção natural. A sobrevivência de um grupo exige um complexa teia de relações e relacionamentos que assegurem e optimizem o seu funcionamento. Dessa organização faz parte um respeito tácito pela hierarquia, na qual impera também a lei do mais forte. Agregações de indivíduos de acordo com interesses comuns são também frequentes. É um cenário interno da lei da selecção natural, embora de forma controlada, para que o grupo vingue ... e para que os subgrupos vinguem.
Por isso, o Monge não se admira com os destemperos desavergonhados e egoístas que por aí imperam. E consegue desculpar, envergonhado. O pobre do Homem não consegue alijar a carga genética simiesca que reflecte no seu quotidiano. Salvaguardem-se tentativas mais ou menos conseguidas para sublinhar uma perspectiva mais lisonjeira da natureza humana. É um trabalho contra a corrente, cíclico e exaustivo. Uma luta permanente, desgastante, da cada um contra si mesmo, de cada um contra todos, de alguns contra muitos, mas que deveria ser de todos contra todos. Que cada um vá coçar os parasitas da sua consciência social e moral. É um hábito saudável que se recomenda. O Monge pratica-o regularmente. Palavra do Monge.

segunda-feira, agosto 29, 2005

A EXTORSÃO DE DIREITOS ADQUIRIDOS
O Monge anda, desde há algum tempo, agitado, nervoso, irrascível. Está na sua maneira de ser reagir contra qualquer tipo de injustiça. Por isso, não podia deixar de arremessar a sua palavra contra o destempero de um governo que sonega direitos a um sector da população activa que tem sido o bombo da festa nos últimos anos: os funcionários públicos.
Falemos claramente. Estes trabalhadores são os agentes que contribuem para o funcionamento do Estado. Mais do que isso, asseguram a concretização das medidas do Estado Social, uma emergência preciosa da organização social europeia do pós guerra. Este Estado Social tem como uma das suas missões assegurar serviços a toda a população, particularmente àqueles que não vislumbram uma nesga de oportunidade na melhoria da sua qualidade de vida. O Estado consegue isso assumindo-se como entidade mediadora e reguladora, dotando-se da autoridade e dos meios que assegurem uma adequada redistribuição da riqueza. Os funcionários públicos vêm assim justificada a sua inegável função social.
Foram-lhes, num ápice, extorquidos direitos adquiridos, a saber: alterações na progressão da carreira e na idade da reforma. E tudo isto, por um governo socialista que, sem quaisquer tipo de escrúpulos visíveis, renega expeditamente a sua vocação social. O Monge presenciou e avaliou os aplausos generalizados a tais medidas. Não ficou surpreso, pois conhece a natureza humana: uns aplaudem porque valores mais altos se levantam: os seus, em consonância com a sua dependência de entidades com grande poder interventivo, que lhes ditam o que dizer, o que pensar, o que fazer - o sector empresarial de topo; os restantes aplaudem porque com o mal dos outros podem eles bem, com o bem dos outros, sentem náuseas, vómitos, diarreias e outros males preocupantes.
O monge ouviu, essencialmente, dois tipos de justificações injustificadas. A longevidade humana prolongou-se, as pessoas duram demais e isso é um mal. Por causa deste novo pecado original, devem ser punidos com mais tempo de trabalho. Assim, sem mais nem menos, surge uma nova teologia, caracterizada pela sua extrema ortodoxia. Os seus ditames não se expressam em latim vernáculo, mas em inglês macarrónico. Qualquer pessoa com dois dedos de testa sabe que o aumento de longevidade não se traduz necessariamente em acréscimo de produtividade. O Monge avança mesmo mais. Afirma, sem qualquer hesitação, que o ritmo exacerbado dos tempos que correm reduz, sem apelo nem agravo, o período em que um indivíduo activo mostra um nível de produtividade à medida do sempre sôfrego mundo empresarial.
O Monge ouviu ainda as alusões a um minguado saldo da segurança social. Ele sabe que, se esse saldo não se mostra ainda mais minguado, para tal concorreram, as contribuições, sempre certinhas e pontuais, dos citados funcionários. Mas, desta vez, assevera que não ouviu um único aplauso agradecido. O Monge garante que, do outro lado da barricada, do dito sector privado, desde a base até ao topo da pirâmide salarial, a grande maioria se escusa sistematicamente a pôr em dia os seus deveres contributivos. Se o governo quiser, investigue, revele e puna os milhões de recalcitrantes. Terá descoberto, então, a árvore das patacas que se furta a uma miopia exasperante, comum a uma sucessão de governos endemicamente afectados.
A retórica reinante sobre a terminologia direitos adquiridos é vã, oca, e infestada de má fé. É evidente que os funcionários ususfruiam de direitos, pois aqueles contextualizavam-se em letra de lei. Eram direitos, no mesmo sentido em que há o direito ao acesso à justiça , ou à saúde. Eram adquiridos, por isso lá estavam, sob a forma de lei. Não se adquire o que não existe. Houve um processo, longo de anos, que levou à sua inclusão no corpo normativo. Foi fácil destruir o que levou décadas a consolidar-se. Destruir é sempre fácil: a história dá-nos numerosos e fartos exemplos disso mesmo.
O Monge reconhece o desencanto dos funcionários públicos. As suas expectativas, os seus projectos de vida desabaram fragorosa e doloridamente. Uma das finalidades do direito foi abominavelmente omitida. As leis existem, também, para conferir segurança e estabilidade, mesmo a longo prazo. Não podemos ser coniventes com uma precaridade, obviamente perniciosa, que alguns querem estabelecer como uma inevitabilidade.
Quanto ao governo será, mais tarde ou mais cedo, julgo que mais cedo, punido por acções e intenções. Que saiba apreciar os prenúncios de um divórcio consumado com o país real. Que saiba avaliar e agir. Por aqui, estamos conversados. Palavra do Monge.

terça-feira, agosto 23, 2005

A CASA DA FRONTEIRA

PARTE V
Naquela mesma segunda-feira, a mulher saiu da parte norte da casa da fronteira, bastante mais tarde que o seu companheiro. Ao fim e ao cabo, o seu local de trabalho ficava apenas a cerca de cinco quilómetros, distância que ela percorria num ápice, conduzindo um carro discreto, adquirido há cerca de dois anos, confortável e seguro. Na ressaca da periódica separação a que nunca se habituava, episódios deliciosos irrompiam do passado e surgiam-lhe na memória, impressionantemente vivos, quase reais.
Ali perto, a linha de fronteira dividia a meio um rio, metade do país do sul, metade do país do norte. Assim que o calor apertava um pouco, ambas as margens eram invadidas pelos gritos, pelas risadas, pelas brincadeiras de jovens banhistas. Ambas as margens os viam crescer, ano após ano, até que alguns deles debandavam, empurrados pelas suas próprias expectativas, à procura do seu próprio destino, na tarefa árdua e sempre ambiciosa que é o esboço de um qualquer futuro.
Ao meio do rio, postada exactamente ao centro, emergia um pequena ilha, seccionada pela linha de fronteira. O seu lado norte acolhia um pequeno areal. O seu lado sul, uma fraga de superfície aplanada por caudais consecutivos de cheias invernais. Separando as duas partes, alguns arbustos e uma velha árvore, que teimava em se agarrar, com a determinação ditada por anos e anos de luta ardorosa pela sobrevivência, àquela nesga de areia e rocha.
Aquela tira de areia era, então, o local predilecto daquela mulher, o retiro da sua adolescência, local de meditação sobre questões que a vida lhe ia consagrando em catadupa. Assim, todos os dias, após o convívio a que não se furtava com os amigos, ela nadava até à ilha que tinha como sua, estendia-se no pequeno areal e cerrava os olhos. Apreciava, com deleite, o calor do sol sobre o seu corpo molhado. E pensava. Reflectia sobre coisas aparentemente banais, mas que então lhe eram inacreditavelmente caras, sonhos que guardava só para si, segredos como jóias que se escondem para momentos reservados de prazer egoísta e solitário.
Todos os dias, partindo da margem sul, o seu companheiro actual furtava-se por momentos às brincadeiras costumadas e dirigia-se para a mesma ilha, fazendo sua a fraga lisa. Um desses dias, levara, envolto em dois ou três sacos plásticos, um livro que bebia com sofreguidão. Chegada a hora do regresso, escondia o livro num toco da árvore velha, com as cautelas de quem esconde um velho e raro pergaminho.
De forma que, sem o saberem, aquelas duas almas foram partilhando, de costas voltadas, a ilha da fronteira. Gozavam prazeres só seus, não antevendo quaisquer possibilidades de partilha. Ignoravam o chiste que a vida tem, a malícia contida nas suas piruetas surpreendentes.

quinta-feira, agosto 18, 2005

A CASA DA FRONTEIRA

Parte IV

Todas as segundas-feiras, fazendo provas de um ânimo que lhe escapava, encarava aqueles dezassete rostos de crianças que reconheciam nele, ainda que de forma inconsciente, um dos seus modelos significativos. Esta circunstância acrescia-lhe as responsabilidades, num estado interior de desmotivação generalizada que ele temia se tornasse crónico e, consequentemente, irreversível.
Olhava à sua volta e o espaço físico reflectia a degradação, um mal compartilhado com a parcela sul da sua habitação. Olhava o espaço e revia-se, ali, cerca de vinte e quatro anos atrás, numa sala com igual mobiliário, equipamento similar, só que mais novo, ainda não envelhecido e deteriorado pelo uso. As obras na escola foram sempre poucas e de recurso. Naquela sala, apegado à velha parede, lá estava o mesmo quadro das suas memórias, bocadinhos de giz e um apagador, esquecido da sua real função, de tão desgastado que estava. Ao fundo, os armários de madeira originais, com uma chapazinha no cimo, com uns escritos indecifráveis, gingavam e chiavam, resmungões na sua senilidade, ao mínimo encontrão. Que os respeitassem na sua provecta idade, que bem o mereciam. Aqui e além uma mancha escura no soalho testemunhava infiltrações frequentes e indesejáveis. Era a imagem de marca do país do sul.
Sinal de modernidade apenas um computador e uma impressora. A vanguarda da tecnologia tinha arribado ali, com pompa e circunstância. Um para tantos...
Ele, o professor, procurara sinais do investimento tão proclamado no ciclo em que leccionava: o primeiro. Surgiram-lhe vagos rumores de vagas preocupações, lá na década de noventa, sem efeito prático manifesto e visível.
Reformas no ensino, essas sim, foram muitas, tantas que já lhes perdera a conta, Tantas quantas os ministros, e também sem efeito prático e visível. Ele, o professor, conhecia os segredos do insucesso. O desinvestimento era sem dúvida um deles. Instalações e equipamentos condignos, actuais, adequados à função, estética e funcionalmente atraentes, nem vê-los. Os fundos estruturais a tal destinados eram voláteis, sumiram, desviaram-se, perdidos em não se sabe que ínvios desatinos. O diálogo franco, produtivo, com os verdadeiros especialistas da educação, os professores, de facto nunca existiu. Ouviram-se os papás, sempre interventivos, à procura de mais umas horas de encarceramento coercivo dos seus descendentes, à cata de mais uns momentos de desresponsabilização das suas obrigações paternais. Ouviram-se economistas e outros notáveis fazer alarde do seu saber enciclopédico. Ouviram-se comentadores, outros oradores e escribas, opinando em catadupa em discursos feitos por encomenda dos seus reverendos donos. Mas os professores, esses, não se ouviram, pois as verdades podem ser tremendamente embaraçosas. O chumbo foi considerado um crime e, por consequência, camuflada e diplomaticamente proibido. O facilitismo foi institucionalizado por decreto. Ao nono ano, os chumbos, esses, desabaram fragorosamente sobre o país do sul, surpreendendo todos, menos os professores.

quinta-feira, agosto 11, 2005

A CASA DA FRONTEIRA

Parte III

Desde inícios de Setembro, invariavelmente, aquele homem seguia as mesmas rotinas. Era um ritual penoso que ele cumpria com a consciência da sua inevitabilidade. Todas as segundas-feiras, bem cedo, se deslocava sozinho para sul, com uma mala com as roupas necessárias a uma semana de ausência. Era noite quando saía de casa. Seria noite quando a ela regressasse, sempre seguindo um caminho de sombras, que lhe dissimulava o percurso, sem lhe aliviar o espírito.

De véspera, despedia-se da mulher e dos filhos, uma vivência sempre dolorosa, mas que ele tentava atenuar com uma jovialidade que de facto não sentia. A partir daquele momento, a saudade começava a impor-se no seio daquele grupo de uma forma peculiar, pois era uma saudade antecipada, que se manifestava não exclusivamente em momentos de ausência, mas também, e paradoxalmente, estando todos ali, bem juntos, no âmago da casa fronteiriça.

Umas quantas horas mais tarde, chegava ao local de trabalho pouco predisposto para o concretizar. Naquele país, o país do sul, um projecto eternamente em fase de esboço, apenas ele e os colegas entreviam a importância da profissão que desempenhavam, o seu intrínseco e indeclinável valor.


sexta-feira, agosto 05, 2005

Anotações:

a) A Saga da Casa da Fronteira terá continuação.

b) O Monge passou o dia embebido numa atmosfera pesada, campacta, cor de chumbo. Era uma ambiência surreal. A cidade asfixiava num nevoeiro contrário à sua natureza: não refrescava corpos, mas amolecia ânimos. A cidade estava sujeita a um chuvisco invulgar. Não era a água benfazeja e tão avidamente desejada que tombava. Eram fagulhas esbranquecidas, ainda mornas, assinaturas vivas da calamidade de algures. Notícias pouco frescas de dramas mais ou menos anónimos. Pequeninas pedras pomes em que se transformou o suor de muitos. Esta atmosfera não se respira, corta-se à faca e mastiga-se. É um filme por demais visto. Um suplício implacável e tantas vezes repetido, que gera indiferença. Não devia ser assim.
Parece que as próprias andorinhas, tão infatigáveis no seu eterno afã também se cansaram. Repousam, alinhadas rigorosamente numa varanda vizinha. Ou será que escutam a Chamada, o apelo do Sul. Tão cedo? Necessariamente este país está a perder a hospitalidade, por muitos considerada como imagem de marca.
c) Da Ucrânia vem um testemunho da facilidade com que as leis do capitalismo neoliberal, disseminado pela globalização, são assimiladas por alguns cidadãos dos países de leste. A corrupção entranha-se num ápice e descaradamente no tecido social. Qualquer oportunidade é aproveitada de imediato. Agora são bandeiras, bandeirinhas, camisolas, canecas e outros acessórios, todos laranjinhas, de ex-campanhas de luta político-ideológica que se vendem de forma organizada, por familiares dos detentores do poder. O sucesso deste modelo neoliberal reside na sua coincidência, ponto a ponto, com a natureza mais crua e selvagem do ser humano. Em termos evolutivos, entendidos como desenvolvimento da consciência social do indivíduo, é o descalabro. Assim não vamos lá. O egoismo espalha-se e consome valores fundamentais tão indiferentemente como as línguas de fogo vão consumindo bens. É fácil ser egoista, está nos genes de cada qual. A solidariedade, a tolerância, são facilmente esquecidos, desaparecem do léxico e das práticas. Isso é mau.
d) Uma última referência se impõe. 60 anos após a deflagração da bomba de Hiroxima continuam a morrer inocentes por iniciativa declarada dos senhores da guerra. Necessariamente, o Homem não aprende com os seus erros. A sua memória é curta e a sua vontade volúvel.
Palavras do Monge

quinta-feira, agosto 04, 2005

A CASA DA FRONTEIRA

Parte II
No interior da habitação, a linha de fronteira continuava, inabalável, o seu percurso e a sua função: separar mundos, apartar destinos, demarcar territórios. Por coincidência ou não, dividia o leito conjugal rigorosamente em dois. A parte norte, para a mulher. A parte sul para o homem. E mesmo aqui as diferenças eram penosamente evidentes. Do lado da mulher, uma mesinha de cabeceira de traços bem lançados, moderna, atraente, ataviada com um paninho bordado, simples, mas com gosto. Um candeeiro, com idêntico estilo, inundava a parte norte do quarto com um luz suave, atenuada na justa medida por um quebra-luz creme. Ainda sobre a mesinha, um livro, no interior do qual um marcador estava habituado a mudar de poiso frequentemente. No local certo, um tapete macio prevenia o contacto brusco dos pés nus com as tabuinhas lustrosas do soalho.
Do lado sul, do lado do homem, o contraste chocava. Ao lado da cama um banco rude, despojado de verniz ou tinta, cuja cor natural tinha sido mascarrada pelo uso e pela inevitável passagem do tempo. No assento, um castiçal manchado pela cera que escorria, lacrimejante, de uma vela já curta. Amontoados, num desleixo, enxergavam-se comprimidos, que um olhar entendido poderia identificar como sedativos, ansiolíticos, anti depressivos... remédios recentes para velhos e irremediáveis males. Naquela luminosidade exígua, sacudida, aos repelões, entrevia-se, a um canto, uma cadeira para onde roupas tinham sido lançadas descuidadamente. O espaço sobrante era partilhado por uma tigelinha de bordos lascados, por um rústico pincel, um pedacinho de sabão e um espelho orlado de azul, já estalado. Ao lado da cama, o único sinal de conforto era um par de chinelos, desirmanados, de pontas há muito laceradas.
Este estranho casal tinha sido brindado com dois filhos: um casalinho que a linha de fronteira teimava em separar. O quarto do primogénito, um rapaz, ficava no lado sul. O quarto da rapariga, em perfeita simetria, erguia-se no lado norte. As diferenças continuavam manifestas: um extremo conforto, no quarto norte, e uma extrema parcimónia, no quarto sul.
Surpreendentemente, aquelas quatro almas não tinham sucumbido às intenções, inconscientes mas persistentes, da linha da fronteira. Até àquela altura, tinha sabido manter-se imunes ao apelo persistente, atroador, à separação, ao chamamento contínuo de dois mundos, tão diversos como inconciliáveis.
Não se poderia dizer que eram felizes, mas batiam-se denodada e orgulhosamente pela conquista da felicidade. Sabiam que a felicidade é esquiva, furtiva, escorregadia. Gosta de ser seduzida, goza o momento da sedução mas, logo após, volúvel, foge-nos por entre os dedos. Por isso sabiam que, de facto, a felicidade não existe, mas apenas momentos felizes.
O Monge

quarta-feira, agosto 03, 2005

A CASA DA FRONTEIRA

Era um edifício deveras singular. Começava por estar posicionado exactamente sobre a linha da fronteira. Era uma linha imaginária, mas implacável. Rectilínea, não abdicava desse estatuto. Cortava a direito, alheia à inexorabilidade das consequências que ditava.
Metade da casa, a parte norte, mostrava um exterior agradável, com fachadas pintadas numa ténue tonalidade amarelada, uniforme, atestando a sua qualidade e a sua recente aplicação. Janelas de alumínio lacado e vidraças duplas emparceiravam com varandas pintadas de verde, também uniforme e com idêntica atestação. Um viçoso relvado, bem aparado, entremeado com tufos floridos, de cores perfeitamentamente integradas, predispunha-o como excelente local de lazer e óptima antecâmara para uma privacidade sem grades, para um recolhimento sem medos.
A outra metade, em perfeita simetria, era a sua antítese. As paredes reflectiam os maus tratos do tempo e o desmazelo dos homens. Pedaços do revestimento tinham desaparecido, colocando a nu inestéticas feridas, manchas entre outras manchas de um tom baço, desmaiado, cuja original tonalidade era indetectável. As janelas, de guilhotina, certamente há muito que não eram abertas, pois ameaçavam desconjuntar-se a qualquer momento. Vidraças rachadas, suspensas na caixilharia por artes do demo ou de um piedoso acaso, enquadravam-se perfeitamente na imagem de declínio generalizado. As varandas, envergonhadas da sua nudez, coravam em tons aleatórios de um ferruginoso ocre.
O jardim, esse, não existia. A vegetação, descontrolada, crescia em selvagem obediência às leis naturais. Notava-se a ausência de mão humana, que colocasse nexo, ordem, criatividade, na balbúrdia reinante. Sinais de presença humana, apenas um carreiro que apontava à porta degradada, de onde as ervas tinham sido arredadas pela regularidade de um qualquer pisotear.
O Monge - Parte I

segunda-feira, agosto 01, 2005

Povo: unicidade do significante; diversidade do significado

O Monge fica estarrecido com o uso abusivo do vocábulo "Povo". Os políticos da nossa praça, e não só, usam e abusam dessa palavra, pressupondo a sua unidade. Dá-lhes jeito, pois cria uma falsa sensação de unanimismo. "Povo" seria assim entendido como a generalidade da população, nos casos em apreço, imbuída da mesma opinião do fervoroso orador e ardoroso político. Este entendimento implica a legitimidade da acção, assente não na maioria, mas na totalidade dos cidadãos. É uma ideia perigosa, pouca condigna com a diversidade democrática e uma rotunda falácia. Para além disso, é uma atitude desrespeitadora da inteligência do público potencial.
Frequentemente, é utilizada a alternativa "Portugueses". Portugueses há-os de todos os gostos e para todos os gostos: altos, gordos, magros, brancos e noutras tonalidades, fachos, comunas e assim-assim, activos e apáticos, condescendentes e intolerantes. Tão diferentes entre si que o Monge pode afirmar com plena certeza que não existem dois iguais.
Fundamentalmente, o "Povo" abrange uma população com uma profunda diversidade de interesses. Fundamentalmente, o "Povo" mexe e remexe, convulsiona-se, entrechoca. O "Povo" é uma dinâmica, não uma entidade estática. É uma multiplicidade de lutas, de combates em permanência. Os compromissos são possíveis, pontuais ou mais duráveis, ou mesmo impossíveis. Com(n) fusões de interesses comuns contra outro ou outros grupos de interesses comuns, mas antagónicos.
O termo Povo é especialmente usado em momentos historicamente significativos, especialmente caracterizados pela convulsão social, reiterada ciclicamente. Como exemplos, o Monge aponta a revolução francesa, a revolução de Outubro, a nossa revolução de Abril. São momentos em que os antagonismos sociais emergem com particular e estrondosa violência. São ocasiões de ruptura, de colisões fracturantes de interesses. É a lei selvagem e Darwinista da selecção natural aplicada às tensões sociais. É um desespero retórico tentando unificar o inconciliável. Estranho paradoxo este: falar do Povo e para o Povo, quando esta pretensa entidade está mais que nunca dividida, estraçalhada, retalhada em facções que se digladiam furiosamente.
"Portugueses", vós sabeis que não sois uma unidade, que os vossos interesses, eventualmente, muito possivelmente, divergem do vizinho do lado. Por cá o Monge desconfia. Os nossos representantes repetem, com uma frequência preocupante, os termos em causa. Serão os sopros prenunciadores de uma forte borrasca social? À cautela, o Monge vai afiando o lápis e a sua verve. Pois é. Palavra do Monge.

terça-feira, julho 26, 2005


JANELAS SEM TINO

Foste tu predestinado,
Fadado por nascimento,
A construir mil janelas
Viradas para qualquer lado.

O quarto escuro, sombrio,
onde acordaste, num brado,
Era gelado, tão frio,
Sórdido cárcere limitado.

Abriste janelas sem tino,
Num acesso de cegueira,
Foste delimitando o destino,
com seteiras na fronteira.

Aprendeste com os enganos,
Ou não aprendeste, afinal?
Por muitos que sejam os danos,
Errar, sendo humano, é natural.

Janelas para as traseiras
São pequenas, limitadas,
Restringem tua visão.
Janelas para a frontaria,
Dão-te o mundo em colisão
No confronto do dia-a-dia.

Janelas grandes ofuscam
O brilho do teu olhar.
Janelas pequenas demais
Não te deixarão ver o mar.

Tu vais abrindo janelas
Mas outras vais querer fechar.


Umas mostram-te a rude vida
Em tons negro e cinzento.
Outras abrem-se, em seguida,
Na cor mágica de um momento.

Tu abres janelas para fora,
Tu abres janelas para dentro,
Poderás, a qualquer hora,
Reflectir teu sentimento.


Tu vais abrindo janelas
Mas outras vais querer fechar.

Não feches tuas janelas
Produto de tal labor.
Quererás voltar a elas
Para te lembrares do sabor.

Tu vais abrindo janelas
Mas outras vais querer fechar.
Não feches tuas janelas,
Não te vá faltar o ar...

O Monge

terça-feira, julho 19, 2005

A criança aprisionada: um novo paradigma social

Há uma coisa que anda a ruminar na mente do Monge. Há uma constatação que o preocupa e que devia preocupar paizinhos, professores e a todos os que detêm responsabilidades educativas, nomeadamente aqueles que tomam as ditas grandes decisões: os políticos da nossa praça. O termo "ditas" é uma prova da desfaçatez do Monge. De facto, a este nível, não existem pequenas decisões, porque qualquer decisão pode provocar grandes consequências. Pais, políticos e outros intervenientes na educação das nossas criancinhas decidem, agem, mas, por qualquer motivo que nos escapa, não medem as consequências. É o eterno problema da matemática, que não é apenas deste tempo, mas que atinge, de forma endémica, as gerações antecessoras.
Outra prova da desfaçatez do Monge é, se bem repararam, a não inclusão dos professores na enumeração dos não medidores de consequências. Tais seres, os incompreendidos, os silenciados, os estigmatizados do sistema, há muito que compreenderam a problemática, pois dominam a matemática dos afectos, das relações, das motivações, das dores, dos contentamentos das crianças e jovens destes tempos atribulados. Estão na linha da frente, vivem nas trincheiras, pugnam anonimamente, carentes de recursos e de estímulos, pelo futuro das gerações.
O Monge sabe que eles estão preocupados. O Monge sabe que as crianças de hoje são crianças aprisionadas, física e psicológicamente. Matemáticamente, é extremamente provável o encarceramento de uma criança desde os três meses de vida extra uterina. A partir desse momento, a criança passará a maior parte do seu tempo, praticamente enclausurada em creches, jardins, escolas, ATL's. Tudo isto com a franca adesão dos pais. Pais cuja principal característica é a ausência. De tal modo que, matemáticamente falando, quem detém a quase omnipresença junto das crianças de hoje são os ditos seres incompreendidos, a população das trincheiras, os silenciados, os anónimos, em suma: os professores.
O grande dilema da educação contemporânea está aí: poderão os professores, mesmo que armados com o seu saber, a sua dedicação, a sua experiência, substituir os pais, inevitável e definitivamente ausentes. A resposta é imediata: um rotundo não. Uma infância vivida exclusivamente num meio colectivo, dispersa afectividades, perturba a apreensão do real, despoja a criança de momentos privados de fruição e consolidação de afectos, de cognições, de partilha. É uma vida em ruído. E as crianças precisam de momentos de sossego, de serenidade, de paz. A família é esse lugar e aos pais compete essa responsabilidade. E o Monge acusa: os pais ausentes de agora fogem às suas responsabilidades. As consequências da sua ausência em momentos cruciais da vida dos filhos estão a ser marcantes na determinação do perfil do cidadão e na natureza da sociedade. A sua ausência de hoje marcará decisivamente o futuro dos seus. Palavra do Monge.

terça-feira, julho 12, 2005

O MONGE
Em cavadas arcadas
Dois luzeiros se incendeiam.
Olhos duros, profundos,
Cansados de ver mil mundos.
Contrárias emoções ateiam.
E no fundo,
Aquela chama, crua, coruscante,
É o facho, o testemunho,
De uma alma viajante,
Sempre ávida de ver mundo,
Sempre ébria por ver gente.

segunda-feira, julho 11, 2005

A respeito de porcas e bacorinhos

O Monge gosta de estar informado, o que é coisa difícil nesta era conturbada, em que a verdade não vale peva. Céptico como sempre, o Monge reconsidera, reavalia, lê nas entrelinhas. E ele sabe. Sabe que a verdade se transfigurou. É um mero títere, feito à medida dos Manipuladores: amachucada, pisoteada, contorcida. Tem uma função, já não é uma finalidade. Foi desclassificada: é um instrumento, um meio, uma ferramenta em segunda mão.
O Monge já desconfiava do absolutismo da Verdade. Era por ele assumido que ela é sempre relativa e, para além disso, subjectiva. Obra preciosa da joalharia, era talhada à medida de cada qual, reflectindo as cores do mestre ourives. Adquiria assim brilhos inesperados, sempre diversos, mas não se despia da sua natureza estética e ética. Nem se despojava de elementos fulcrais, essenciais, que permitiam, apesar de tudo, um acordo, um compromisso, acerca da parcela da realidade que irradiava.
O facto que o Monge vai relatar inserir-se-á, no seu entender, neste segundo aspecto da verdade, menos sórdido do que o primeiro, merecendo aquele uma abordagem em posteriores reflexões.
O Monge leu. Leu uma história com trejeitos de literatura infantil, com porca e bacorinhos à mistura. E com os inevitáveis veterinários. A história não era tão inocente como isso. Pois a porca, gorda, bem nutrida, seria o Estado. Os bacorinhos seriam os diversos sectores do funcionalismo público. No entender do talentoso escritor, vocacionado para o entretenimento das nossas preciosas criancinhas, a porca era gorda de mais, provavelmente obesa, e os bacorinhos demasiado ávidos. E, pressuroso, logo o dito escriba alvitra a solução: que se chamem os veterinários.
É evidente que os veterinários, neste caso, só podiam ser os economistas que, com mezinhas cuja fórmula só eles conhecem, emagrecerão a porca e, por consequência, os bacorinhos, também eles candidatos a uma obesidade precoce.
Pois é. O citado e habilidoso escritor pecou. Pecou por nebulosa Visão (o uso do homónimo é mera coincidência). Esqueceu-se que os ditos bacorinhos, para além da sua racionada refeição, prestam serviços considerados fundamentais. Se a porca emagrece, os serviços emagrecem. E o escritor emagrece consequentemente, pois é um fruidor dos melhores ou piores serviços dos bacorinhos. Se os bacorinhos são aleitados, são-no por direito próprio, pois o direito à vida e à sua qualidade é fundamental. De facto, qualquer cidadão português é um bacorinho, embora muitos rejeitem a maternidade. Todos sugam da mesma mãe porcina. E tenho a certeza de que alguns dos rejeitadores sorvem a grandes goles, ultrapassando largamente a ração a que tinham direito.
O literato em causa esquece-se que, na sua qualidade de bacorinho rejeitador, usufrui duplamente do serviço dos bacorinhos públicos. Dos seus serviços directos e das suas contribuições para a melhor saúde da mãe porca, que eles cumprem integral e religiosamente.
Não fogem, não têm meios de evasão. São santos, pois fazem milagres. São alimentados e alimentam. Alímentam, como filhos exemplares, a sua mãe que, por sua vez alimenta os bárocos rejeitadores e ingratos. Estes, para além de fugirem à sua obrigação filial, vulgo fiscal, ainda defendem o emagrecimento da sua ascendente directa.
Tamanha incongruência é sinal de miopia ou de má intenção. O Monge recomenda uma consulta da especialidade ao douto literato, acompanhada de devida contrição. Quanto aos veterinários, que o demónio seja surdo e cego. Se a porca porventura está doente, morreria necessariamente da cura. Que a Verdade esteja sempre convosco. Palavra do Monge.

terça-feira, julho 05, 2005

Reclassificação taxonómica

Emergem indícios que estamos perante uma descoberta científica sem paralelo. O Monge perspectiva que Lineu bem gostaria de viver este momento inigualável. Com o seu reconhecido talento, espírito metódico, conhecimento e experiência seria, sem dúvida, contributo de vulto para destrinçar esta ocorrência, que constituirá motivo de aceso debate e de muita e continuada especulação no seio da comunidade científica.
E realmente o caso não é para menos. Estamos perante o despontar de uma nova espécie, ou subespécie, do género Homo. Especialistas em sistemática animal alvitram novas designações, a necessitar daquele consenso que esbata as dissonâncias reinantes.
Uns propõem a designação genérica Homo horribilis, outros, a de Homo economicus (vulgo Economistas). Existem dúvidas em utilizar a classificação trinominal (Homo sapiens horribilis ou Homo sapiens economicus), devido a contradições no seu comportamento em laboratório, quer em situações de observação individual, quer quando integrados no seio do grupo. Das comunicações a muito custo saídas do espartilho da comunidade científica, poderemos depreender que as atitudes e comportamentos analisados carecerão da indispensável coerência e racionalidade que permitam o uso da dita classificação.
Passaremos a adoptar a designação corrente (Economistas), visando poupar o confronto do leitor com a extensão e complexidade da designação científica . Os dados conhecidos a respeito dos Economistas permitem-nos aludir a três características específicas, a saber:

1. Um ego inflacionado, que pode conduzir a atitudes ou comportamentos que sobrevalorizam o seu verdadeiro papel num grupo ou organização;

Nota: Aponta-se como corolário desta constatação o facto de aceitarem, sem rebuço, o epíteto de Notáveis.

2. A auto assunção, geradora de posturas e acções consequentes, de três atributos fundamentais:

- a omnisciência, que lhes permite discorrer sobre qualquer tema ou assunto, sem intervenção da auto consciência, superego ou qualquer tipo de censura interna, que é tida como comum aos outros espécimes;

- a omnipresença, que é a capacidade de saturar os meios de comunicação com as suas intervenções constrangedoras;

- a omnipotência, determinada pela presunção convicta de que são detentores de poder ilimitado. Acrescenta-se que este tipo de patologia é extremamente perigoso, pois pode conduzir a situações de domínio no interior de grupo de pertença, passíveis de causar crispação, convulsão ou mesmo oposição reactiva do tipo agressivo.

3. Uma evidente incapacidade de auto avaliação, impeditiva da análise de actos por si cometidos e da consequente responsabilização individual. Reparemos nos casos, recentemente vindos a público, de três espécimes desta natureza que, assumindo em devido tempo funções relevantes do foro económico em vários governos anteriores, criticam a actual conjuntura económica em termos depreciativos. De facto, estão fisiologicamente incapacitados de reconhecerem a sua participação em actos e decisões conducentes à dita.

4. O emprego obsessivo/compulsivo de terminologia característica, de que se salientam as seguintes expressões:

"Trabalhar mais"; "Diminuição de Pessoal", "Acabar com o emprego vitalício"; "Reduzir prestações"; "Aumentar a idade da reforma"; "Menos benefícios"; "Congelar vencimentos", "Baixar a taxa do IRC".

O Monge não pode deixar de se congratular por esta contribuição imprevista e inusitada para o enriquecimento do Reino Animal. No entanto, recomenda uma vigilância discreta, mas aturada, dos referidos espécimes e das suas acções. A sua reeducação seria estratégia a prosseguir. Para o bem deles e também para o de todo o género Homo. Palavra do Monge.

segunda-feira, junho 27, 2005

O Monge está condenado. Condenado a viver num estado de irritação permanente. E a causa está determinada. E o diagnóstico parece fácil. O monge fica irritado ao ligar a televisão. O Monge fica irritado com o uso que se faz dela. Para que haja conformação das mentes de quem houve e de quem vê.
Agora foi o senhor Vitorino. Pessoa com estatuto, com currículo. Mas a fazer afirmações que contrariam esse currículo. Que contrariam a sua militância num partido com responsabilidades sociais. A usar o acesso privilegiado a meios de divulgação que não dão direito a contraditório. Pois o Monge não é ouvido em programas de TV, em horas de garantida audiência. O Monge usa um mero blog e como instrumento essencialmente terapêutico.
Estou a ouvir o senhor Vitorino e sinto os sinais premonitários daquela alergia, que se vem assumindo como crónica. Alergia a uma verborreia, a uma retórica, que indiciam que algo vai mal. Também conheço o remédio. Desligar a televisão.
O seu ataque a sindicatos, instrumentos essenciais à defesa de trabalhadores, sejam eles quais forem, é um atentado a princípios democráticos essenciais. Os sindicatos não são construções virtuais. Surgiram num processo social e em consequência dele. A sua força decorre portanto de uma necessidade. A sua força só se desvanecerá com o diluir dessa necessidade.
O que irrita o senhor Vitorino é este determinismo social. Em situações de crise, de manobras atentatórias contra grupos de trabalhadores, "sejam eles quais forem", a importância dos sindicatos cresce exponencialmente. Independentemente da vontade do senhor Vitorino e de outros que tais.
Passemos à greve. A greve é um direito dos trabalhadores e está tudo dito. A greve assume-se como uma derradeira estratégia, quando se esgotaram as alternativas de diálogo. E, senhor Vitorino, a essência da greve está na produção de consequências. Pois as pessoas necessitam que lhes lembrem que o sector em greve tem um valor e uma importância económica e social. Para aqueles que tem curta memória ou que fingem que a têm curta, a paralisação de certos serviços funciona como cábula. E a cábula diz: estes serviços são necessários, imprescindíveis, contribuem, afinal, para o desenvolvimento e funcionamento do país. Não são descartáveis, senhor Vitorino.
O monge tem pena. Tem pena de si. Esteve muito tempo afastado do mundo real e vive num mundo irreal. Tão irreal, tão inacessível, que criou uma constituição irreal e inacessível que, quando referendada, é rejeitada. As pessoas comuns gostam da linguagem "pão, pão; queijo queijo" e, para além disso, como S. Tomé, precisam de comer o pão e provar o queijo.
Senhor Vitorino, os sindicatos estão aí e recomendam-se. E ainda bem. E, já agora, um conselho. Que tal uns momentos de recolhimento, de reflexão, num sítio calmo e ermo? Esta vida agitada tende a fazer esquecer o verdadeiro sentido da existência humana. Aceite o conselho deste seu Monge, que já foi seu admirador. Palavra do Monge.
Tudo aquilo que eu disser
Seja gravado na pedra;
Tudo aquilo que eu fizer
Seja a Paz ou seja a Guerra;
Será um cisco de Memória
No areal vasto da História.

O MONGE
O Homem detém uma fragilidade que é condição de desequilíbrio da evolução da Humanidade. Nem o facto tão propagandeado do aumento da esperança de vida vem dar uma ajuda a esta problemática. Pois é. O Homem é um ser efémero e nessa efemeridade reside, a razão profunda do Caos no Mundo. Cada um de nós retém memórias que são infinitesimais em termos do curso da História. Por outro lado, essas memórias devem ser significativas. E sê-lo-ão tanto mais quanto maior for o grau de envolvimento pessoal nos actos geradores de memórias. Como a vida do Homem é curta, fica coarctado o acesso a factos ou conjunturas que se mostraram como cruciais no percurso histórico. A Revolução de Abril ocorreu há 31 anos. Muita da nossa população activa não viveu as dinâmicas sociais da época. Nâo se envolveu, não se implicou, não chorou, não gritou, não riu nem sorriu. Não lutou, não sofreu por uma utopia, por uma nesga de esperança, por um projecto de vida, por um modelo de sociedade. Outros sim, o fizeram e são definitivamente credores da nossa gratidão. Graças a eles, pedaços de Utopia desagregaram-se e ganharam corpo em princípios, em garantias, em direitos. Repare-se, direitos, não regalias, privilégios ou outras mordomias que entraram na retórica de um neo liberalismo insidioso. Este quadro de direitos é sagrado, com a sacralidade que advém das coisas sofridas, de acções convictas de gerações e gerações, de vitórias e derrotas, de avanços e recuos. E todos nós fruimos essas conquistas, numa sociedade, apesar de tudo, mais igualitária e mais justa. Por isso, o Monge aponta-te o dedo e adverte-te: és corresponsável pela manutenção daquilo que foi obtido amarga e duramente, por quem viveu, por quem sofreu, por quem chorou, por quem lutou. Para que não sofras o que os Outros sofreram, para que não chores o que os Outros choraram. Eles legaram-te um mundo melhor. Assim tu o faças aos teus filhos. Palavra do Monge.

segunda-feira, junho 20, 2005

O distanciamento assume-se definitivamente como uma virtude. O envolvimento impõe-se amiúde como uma necessidade. São estas as dimensões do Mundo do Caos. São estas as regras do Dono do Mundo do Caos: o Monge. Tem a pregorrativa de se afastar quanto quer e quando quer. Afasta-se para melhor observar. Domina o tempo e o espaço. Vê ordem onde o comum dos mortais se amortalha no casulo da sua limitada visão. Envolve-se com a oportunidade que lhe convém. Envolve-se premeditadamente. Conhece os fins, domina os meios. Age para mudar. Escuta e vê. Fundamentalmente, pensa e julga. Abomina comentários, intrusões no seu livre arbítrio. Pois sabe que os amortalhados estão contaminados. Porque confinados aos limites estreitos do seu casulo. Porque, infelizes sem o saberem, estão agrilhoados e agrilhoam. Julgam que vêem e são cegos. Espreitam o mundo pela brecha gradeada de uma prisão e aquele minúsculo pedaço de céu, aquela mancha amortecida de luz, uns resquícios entrecortados de vida, são por eles tomados pela Vida, pelo Mundo, na sua totalidade e infinitude. Cuidado com o seu verbo sedutor, com a sua sua retórica inflamada mas insustentada. Não voam, mas não deixam voar. E aí está o seu grande pecado e a razão do seu proporcional castigo. O Homem nasceu para voar, para respirar a liberdade, para fruir a beleza de um mundo sem caos. Existe para o conseguir, para colocar ordem onde ela parece estar ausente, até que, definitiva e seguramente, todos os homens consigam planar nas alturas da sua intrínseca grandeza e ver com a crueza da águia o mundo como de facto é. Assumir-se-ão, então, como donos do Mundo do Caos. Com as faculdades que tal estatuto lhes confere, envolver-se-ão e serão activos agentes da mudança. Não aquela mudança sectária e segregadora, aparente e elitista, mas aqueloutra que beneficiará todos e cada um. Benvindos ao Mundo do Caos. Palavra do Monge.