Os comentários foram rareando, a modos que numa solidariedade estreita com o escassear da Esperança. Diziam que o Mundo mudava, mas não muda. Há para aí estirpes necrófagas que tendem morbidamente a toldar horizontes. Vivem das trevas e da putrefacção. Criam cenários desoladores. Criam estribilhos que falam de mudança, mas afastam-na com modos abruptos e brutais.
De facto, existe uma lógica neste estranho modo de ser e de estar. Mudar realmente, naquele sentido que se nos prefigura, implica, pura e simplesmente, a erradicação destes protagonismos indesejáveis.
terça-feira, março 09, 2010
sexta-feira, janeiro 01, 2010
INTERVIR
O Monge tinha desistido dos seus mais ou menos regulares monólogos. De facto, assustou-se com a sua faculdade de antever o futuro. Mais do que isso, aterrorizou-se com a natureza catastrófica do que antevia. Mais do que isso, desanimou face à sua inevitabilidade. Deu como facto consumado a impossibilidade de desviar o fluxo temporal da sua sequência e sentido último. É um tremendo erro existencial.
Deste modo, contemporizou com a natureza determinista de certa visão da História. Claudicou face à crença da intervenção humana e da sua eficácia no sentido de delinear o seu próprio destino. Pois, o Monge é um homem, um homem por ora desanimado e descrente. Não há nada pior do que isso.
Essa descrença acentuou-se quando o Monge se apercebeu da enormidade da intervenção a fazer para desviar o curso dos acontecimentos. O que se pede é uma tarefa monstruosa no que respeita à magnitude dos meios a mobilizar, das vontades a cativar e dos efeitos a obter. De facto, o que se pede é uma autêntica revolução. Uma revolução global, profunda, inevitavelmente sofrida, como o são todas as revoluções. Revolução no indivíduo, nos grupos, nas mentalidades, no modo de ser e de viver.
Impõe-se uma mudança radical no espectro social, apeando protagonistas económicos e políticos. Impõe-se uma mudança substantiva nas interacções do poder e no objectivo último do seu exercício, sempre no sentido de garantir um presente e um futuro de qualidade para as gerações.
Impõe-se a responsabilização de quem contribuiu para este caos, para esta acumulação de injustiças e para um retrocesso concreto, no que concerne ao respeito pelos direitos fundamentais e pela capacidade de os incorporar na sua prática política, económica e social. Impõe-se um efeito dissuasor que evite as consecutivas recaídas de uma sociedade que não aprende com os seus próprios erros, patologicamente incapaz de analisar as suas causas no friso histórico da sua própria existência.
No entanto, há sinais de que vários sectores desta sociedade não se conformam e se assumem como protagonistas da mudança. São bons sinais e um exemplo para o Monge e para a sua súbita apatia. Senão vejamos o que se transcreve seguidamente, noticiado no jornal Público, neste primeiro dia de 2010:
“A humanidade está, como nunca, perante o desafio de renovação de civilização”, palavras de D. José Policarpo na sua homilia do Dia Mundial da Paz, proferida na paróquia de Nossa Senhora da Purificação de Oeiras.
O cardeal patriarca direccionou as suas palavras para os “grandes problemas” que, numa época de globalização, “são comuns a toda a família humana, como o são, por exemplo, a salvaguarda do planeta Terra, a casa onde habitamos, a construção da paz, a vitória contra a violência, a promoção da justiça, de modo particular nos sistemas económico-financeiros e sociais”.
E, se os problemas são globais, também as soluções terão de o ser, considerou, referindo que a opinião pública portuguesa tem sido mobilizada na atenção a problemas específicos: “a crise económica, a violência crescente, a eficácia do sistema judicial, a corrupção, a luta contra a degradação do ambiente”.
D. José da Cruz Policarpo lembrou que estes problemas estão interligados, sendo causa-efeito uns dos outros.
“Administrar a justiça numa sociedade em que as pessoas e as instituições não procuram ser justas é tarefa árdua e complexa”.
A solução para todos estes “graves problemas da sociedade exige uma profunda revolução cultural e civilizacional”, devendo a tónica ser posta na educação, na família, na comunicação social, nas estruturas culturais, na formação para a liberdade.
“Espanta-me que se façam cimeiras sectoriais, sobre a preservação do ambiente, sobre a economia, sobre a crise financeira, e que ainda não se tivesse dado o mesmo relevo a cimeiras de aprofundamento civilizacional”.
D. José Policarpo relevou ainda que “a Igreja é necessária às grandes causas da humanidade” e que, num quadro de globalização, o debate tem de passar por um diálogo entre civilizações, onde a Igreja Católica e as grandes religiões da humanidade têm um contributo a dar.
segunda-feira, junho 08, 2009
Tempos de Cólera
OTTO RAPP
O Monge compreende, e assume como manifestação de saúde democrática, por parte do eleitorado, o voto de protesto ontem claramente publicitado. Sublinha que não foi o primeiro sinal do género: as presidenciais já o tinham sido.
Fica, no entanto, perplexo com o sistemático sintoma de autismo social e político de um governo que se ancorou cegamente numa maioria eleitoral que, relembre-se, constituiu, por si só, naquela conjuntura, outro sinal de descontentamento face ao rumo da política nacional e também internacional a qual, inexoravelmente, conduziu a esta crise que, por tão próxima e enjoativamente insinuante, se tornou parte da família.
Voluntarismo extremo poucas vezes é sinal de inteligência e repudia o bom senso que deve, obrigatoriamente, constar do perfil de qualquer político, em particular com responsabilidades governativas.
Este governo constituiu, de facto, uma oportunidade perdida no sentido do bem-estar e coesão sociais. Essa esperança, orientada para uma reorientação das políticas que se vinham implementando, sustentou a maioria absoluta de que beneficiou.
É certo que, uma quinzena depois, já os eleitores, defraudados e infamemente traídos, se tinham arrependido. Não se arrepiou caminho, antes se caminhou, obsessivamente, numa senda geradora de injustiças, desigualdades, atropelo de valores e direitos fundamentais.
Foi uma maioria transfigurada em ditadura, com toda a prepotência, arrogância e ausência de diálogo que a todas caracterizam. Como todas as ditaduras, surda e cega aos sinais da rua, encapsulada na sua armadura do pensamento único e, por conseguinte, antidemocrático.
Há muita amargura e bastante descrença nestas palavras, que constatam a facilidade de abastardamento de um sistema democrático e o estranho determinismo que conduz, irrevogavelmente à penalização das eternas vítimas: as franjas mais desfavorecidas da população, irremediavelmente sujeitas à chantagem e pressão do poder económico, travestido de político.
Trinta e tal anos após Abril, a realidade nua e crua ensina-nos que nunca devemos baixar a guarda e muito menos abster-nos de um direito de participação ou de intervenção que não se deve restringir ao mero exercício do voto.
Como se viu, em quatro anos muito se pode destruir. O retrocesso social pode parecer-nos irremediável. Trinta e tal anos de percurso pulverizam-se num ápice.
Mas. também como se viu, é quase impossível calar a indignação. O povo sai à rua em dias assim. É uma reacção tão natural e espontânea como o fenómeno neo-liberal. É um fenómeno de acção/reacção com a natureza dogmática equivalente à de uma qualquer lei física comprovada.
Pode parecer cansativo ou exasperante, mas a natureza do Homem e das comunidades humanas é esta: um eterno ciclo de parada-resposta, um processo de permanente convecção social.
Caríssimos, tempos mais duros estão para chegar. Se tiveram o cuidado de verificar, a Europa, a tal União, com o sagrado objectivo inicial da paz, do progresso por todos e para todos, esfumou-se com a flagrante viragem à direita do espectro parlamentar europeu. Vêm aí mais precaridade, mais desprotecção laboral dos trabalhadores, mais desemprego e outras chagas neo-liberais.
Por mim, esta Europa é uma fraude, é menos que nada, é um paradoxo, um choque para os seus progenitores.
Por mim, é cerrar os dentes e ir à luta, sem quartel, por nós e, principalmente, pelas gerações futuras, numa intenção de fruição e partilha do progresso tecnológico evidente, que deveria conduzir à qualidade de vida e bem-estar de todos, sem excepção.
Palavra do Monge
quinta-feira, abril 30, 2009
Portugal na voz de Ary
As Portas que Abril Abriu
Era uma vez um país
onde entre o mar e a guerra
vivia o mais infeliz
dos povos à beira-terra.
Onde entre vinhas sobredos
vales socalcos searas
serras atalhos veredas
lezírias e praias claras
um povo se debruçava
como um vime de tristeza
sobre um rio onde mirava
a sua própria pobreza.
Era uma vez um país
onde o pão era contado
onde quem tinha a raiz
tinha o fruto arrecadado
onde quem tinha o dinheiro
tinha o operário algemado
onde suava o ceifeiro
que dormia com o gado
onde tossia o mineiro
em Aljustrel ajustado
onde morria primeiro
quem nascia desgraçado.
Era uma vez um país
de tal maneira explorado
pelos consórcios fabris
pelo mando acumulado
pelas ideias nazis
pelo dinheiro estragado
pelo dobrar da cerviz
pelo trabalho amarrado
que até hoje já se diz
que nos tempos do passado
se chamava esse país
Portugal suicidado.
Ali nas vinhas sobredos
vales socalcos searas
serras atalhos veredas
lezírias e praias claras
vivia um povo tão pobre
que partia para a guerra
para encher quem estava podre
de comer a sua terra.
Um povo que era levado
para Angola nos porões
um povo que era tratado
como a arma dos patrões
um povo que era obrigado
a matar por suas mãos
sem saber que um bom soldado
nunca fere os seus irmãos.
Ora passou-se porém
que dentro de um povo escravo
alguém que lhe queria bem
um dia plantou um cravo.
Era a semente da esperança
feita de força e vontade
era ainda uma criança
mas já era a liberdade.
Era já uma promessa
era a força da razão
do coração à cabeça
da cabeça ao coração.
Quem o fez era soldado
homem novo capitão
mas também tinha a seu lado
muitos homens na prisão.
Esses que tinham lutado
a defender um irmão
esses que tinham passado
o horror da solidão
esses que tinham jurado
sobre uma côdea de pão
ver o povo libertado
do terror da opressão.
Não tinham armas é certo
mas tinham toda a razão
quando um homem morre perto
tem de haver distanciação
uma pistola guardada
nas dobras da sua opção
uma bala disparada
contra a sua própria mão
e uma força perseguida
que na escolha do mais forte
faz com que a força da vida
seja maior do que a morte.
Quem o fez era soldado
homem novo capitão
mas também tinha a seu lado
muitos homens na prisão.
Posta a semente do cravo
começou a floração
do capitão ao soldado
do soldado ao capitão.
Foi então que o povo armado
percebeu qual a razão
porque o povo despojado
lhe punha as armas na mão.
Pois também ele humilhado
em sua própria grandeza
era soldado forçado
contra a pátria portuguesa.
Era preso e exilado
e no seu próprio país
muitas vezes estrangulado
pelos generais senis.
Capitão que não comanda
não pode ficar calado
é o povo que lhe manda
ser capitão revoltado
é o povo que lhe diz
que não ceda e não hesite
– pode nascer um país
do ventre duma chaimite.
Porque a força bem empregue
contra a posição contrária
nunca oprime nem persegue
– é força revolucionária!
Foi então que Abril abriu
as portas da claridade
e a nossa gente invadiu
a sua própria cidade.
Disse a primeira palavra
na madrugada serena
um poeta que cantava
o povo é quem mais ordena.
E então por vinhas sobredos
vales socalcos searas
serras atalhos veredas
lezírias e praias claras
desceram homens sem medo
marujos soldados «páras»
que não queriam o degredo
dum povo que se separa.
E chegaram à cidade
onde os monstros se acoitavam
era a hora da verdade
para as hienas que mandavam
a hora da claridade
para os sóis que despontavam
e a hora da vontade
para os homens que lutavam.
Em idas vindas esperas
encontros esquinas e praças
não se pouparam as feras
arrancaram-se as mordaças
e o povo saiu à rua
com sete pedras na mão
e uma pedra de lua
no lugar do coração.
Dizia soldado amigo
meu camarada e irmão
este povo está contigo
nascemos do mesmo chão
trazemos a mesma chama
temos a mesma ração
dormimos na mesma cama
comendo do mesmo pão.
Camarada e meu amigo
soldadinho ou capitão
este povo está contigo
a malta dá-te razão.
Foi esta força sem tiros
de antes quebrar que torcer
esta ausência de suspiros
esta fúria de viver
este mar de vozes livres
sempre a crescer a crescer
que das espingardas fez livros
para aprendermos a ler
que dos canhões fez enxadas
para lavrarmos a terra
e das balas disparadas
apenas o fim da guerra.
Foi esta força viril
de antes quebrar que torcer
que em vinte e cinco de Abril f
ez Portugal renascer.
E em Lisboa capital
dos novos mestres de Aviz
o povo de Portugal
deu o poder a quem quis.
Mesmo que tenha passado
às vezes por mãos estranhas
o poder que ali foi dado
saiu das nossas entranhas.
Saiu das vinhas sobredos
vales socalcos searas
serras atalhos veredas
lezírias e praias claras
onde um povo se curvava
como um vime de tristeza
sobre um rio onde mirava
a sua própria pobreza.
E se esse poder um dia
o quiser roubar alguém
não fica na burguesia
volta à barriga da mãe.
Volta à barriga da terra
que em boa hora o pariu
agora ninguém mais cerra
as portas que Abril abriu.
Essas portas que em Caxias
se escancararam de vez
essas janelas vazias
que se encheram outra vez
e essas celas tão frias
tão cheias de sordidez
que espreitavam como espias
todo o povo português.
Agora que já floriu
a esperança na nossa terra
as portas que Abril abriu
nunca mais ninguém as cerra.
Contra tudo o que era velho
levantado como um punho
em Maio surgiu vermelho
o cravo do mês de Junho.
Quando o povo desfilou
nas ruas em procissão
de novo se processou
a própria revolução.
Mas eram olhos as balas
abraços punhais e lanças
enamoradas as alas
dos soldados e crianças.
E o grito que foi ouvido
tantas vezes repetido
dizia que o povo unido
jamais seria vencido.
Contra tudo o que era velho
levantado como um punho
em Maio surgiu vermelho
o cravo do mês de Junho.
E então operários mineiros
pescadores e ganhões
marçanos e carpinteiros
empregados dos balcões
mulheres a dias pedreiros
reformados sem pensões
dactilógrafos carteiros
e outras muitas profissões
souberam que o seu dinheiro
era presa dos patrões.
A seu lado também estavam
jornalistas que escreviam
actores que se desdobravam
cientistas que aprendiam
poetas que estrebuchavam
cantores que não se vendiam
mas enquanto estes lutavam
é certo que não sentiam
a fome com que apertavam
os cintos dos que os ouviam.
Porém cantar é ternura
escrever constrói liberdade
e não há coisa mais pura
do que dizer a verdade.
E uns e outros irmanados
na mesma luta de ideais
ambos sectores explorados
ficaram partes iguais.
Entanto não descansavam
entre pragas e perjúrios
agulhas que se espetavam
silêncios boatos murmúrios
risinhos que se calavam
palácios contra tugúrios
fortunas que levantavam
promessas de maus augúrios
os que em vida se enterravam
por serem falsos e espúrios
maiorais da minoria
que diziam silenciosa
e que em silêncio fazia
a coisa mais horrorosa:
minar como um sinapismo
e com ordenados régios
o alvor do socialismo
e o fim dos privilégios.
Foi então se bem vos lembro
que sucedeu a vindima
quando pisámos Setembro
a verdade veio acima.
E foi um mosto tão forte
que sabia tanto a Abril
que nem o medo da morte
nos fez voltar ao redil.
Ali ficámos de pé
juntos soldados e povo
para mostrarmos como é
que se faz um país novo.
Ali dissemos não passa!
E a reacção não passou.
Quem já viveu a desgraça
odeia a quem desgraçou.
Foi a força do Outono
mais forte que a Primavera
que trouxe os homens sem dono
de que o povo estava à espera.
Foi a força dos mineiros
pescadores e ganhões
operários e carpinteiros
empregados dos balcões
mulheres a dias pedreiros
reformados sem pensões
dactilógrafos carteiros
e outras muitas profissões
que deu o poder cimeiro
a quem não queria patrões.
Desde esse dia em que todos
nós repartimos o pão
é que acabaram os bodos
— cumpriu-se a revolução.
Porém em quintas vivendas
palácios e palacetes
os generais com prebendas
caciques e cacetetes
os que montavam cavalos
para caçarem veados
os que davam dois estalos
na cara dos empregados
os que tinham bons amigos
no consórcio dos sabões
e coçavam os umbigos
como quem coça os galões
os generais subalternos
que aceitavam os patrões
os generais inimigos
os generais garanhões
teciam teias de aranha
e eram mais camaleões
que a lombriga que se amanha
com os próprios cagalhões.
Com generais desta apanha
já não há revoluções.
Por isso o onze de Março
foi um baile de Tartufos
uma alternância de terços
entre ricaços e bufos.
E tivemos de pagar
com o sangue de um soldado
o preço de já não estar
Portugal suicidado.
Fugiram como cobardes
e para terras de Espanha
os que faziam alardes
dos combates em campanha.
E aqui ficaram de pé
capitães de pedra e cal
os homens que na Guiné
aprenderam Portugal.
Os tais homens que sentiram
que um animal racional
opõe àqueles que o firam
consciência nacional.
Os tais homens que souberam
fazer a revolução
porque na guerra entenderam
o que era a libertação.
Os que viram claramente
e com os cinco sentidos
morrer tanta tanta gente
que todos ficaram vivos.
Os tais homens feitos de aço
temperado com a tristeza
que envolveram num abraço
toda a história portuguesa.
Essa história tão bonita
e depois tão maltratada
por quem herdou a desdita
da história colonizada.
Dai ao povo o que é do povo
pois o mar não tem patrões.
– Não havia estado novo
nos poemas de Camões!
Havia sim a lonjura
e uma vela desfraldada
para levar a ternura
à distância imaginada.
Foi este lado da história
que os capitães descobriram
que ficará na memória
das naus que de Abril partiram
das naves que transportaram
o nosso abraço profundo
aos povos que agora deram
novos países ao mundo.
Por saberem como é
ficaram de pedra e cal
capitães que na Guiné
descobriram Portugal.
E em sua pátria fizeram
o que deviam fazer:
ao seu povo devolveram
o que o povo tinha a haver:
Bancos seguros petróleos
que ficarão a render
ao invés dos monopólios
para o trabalho crescer.
Guindastes portos navios
e outras coisas para erguer
antenas centrais e fios
dum país que vai nascer.
Mesmo que seja com frio
é preciso é aquecer
pensar que somos um rio
que vai dar onde quiser
pensar que somos um mar
que nunca mais tem fronteiras
e havemos de navegar
de muitíssimas maneiras.
No Minho com pés de linho
no Alentejo com pão
no Ribatejo com vinho
na Beira com requeijão
e trocando agora as voltas
ao vira da produção
no Alentejo bolotas
no Algarve maçapão
vindimas no Alto Douro
tomates em Azeitão
azeite da cor do ouro
que é verde ao pé do Fundão
e fica amarelo puro
nos campos do Baleizão.
Quando a terra for do povo
o povo deita-lhe a mão!
É isto a reforma agrária
em sua própria expressão:
a maneira mais primária
de que nós temos um quinhão
da semente proletária
da nossa revolução.
Quem a fez era soldado
homem novo capitão
mas também tinha a seu lado
muitos homens na prisão.
De tudo o que Abril abriu
ainda pouco se disse
um menino que sorriu
uma porta que se abrisse
um fruto que se expandiu
um pão que se repartisse
um capitão que seguiu
o que a história lhe predisse
e entre vinhas sobredos
vales socalcos searas
serras atalhos veredas
lezírias e praias claras
um povo que levantava
sobre um rio de pobreza
a bandeira em que ondulava
a sua própria grandeza!
De tudo o que Abril abriu
ainda pouco se disse
e só nos faltava agora
que este Abril não se cumprisse.
Só nos faltava que os cães
viessem ferrar o dente
na carne dos capitães
que se arriscaram na frente.
Na frente de todos nós
povo soberano e total
que ao mesmo tempo é a voz
e o braço de Portugal.
Ouvi banqueiros fascistas
agiotas do lazer
latifundiários machistas
balofos verbos de encher
e outras coisas em istas
que não cabe dizer aqui
que aos capitães progressistas
o povo deu o poder!
E se esse poder um dia
o quiser roubar alguém
não fica na burguesia
volta à barriga da mãe!
Volta à barriga da terra
que em boa hora o pariu
agora ninguém mais cerra
as portas que Abril abriu!
José Carlos Ary dos Santos
Lisboa
Julho-Agosto de 1975
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segunda-feira, abril 20, 2009
Acto de Confissão
O Monge andava intranquilo, ensimesmado, arredio. Se ascético era, mais ascético ficou. Afastou-se das lides da escrita com a sensação que tudo aquilo que escrevia, vade retro, assumia inexorável realidade.
Mas, a acrescer a esta espécie de psicose, um sintoma de uma virose pandémica e incurável se manifestou. Intrusivo, invadiu-lhe um órgão nestes novos tempos muito pouco activo, comparável ao malfadado apêndice ou às desconfortáveis amígdalas: a consciência. O Monge partilhava a teoria que, com o desuso, o órgão fina-se. Enganou-se.
O dito órgão não se finou. Pelo contrário, com regularidade crescente, aferroava-lhe a alma e o corpo. Tudo por causa de umas prendas, umas reles mas corruptivas prendas.
O Monge pensava que não devia aceitar as ditas mas, devido ao seu peculiar modo de ser, respondia com cortesia à cortesia. Afinal, era má educação recusar uma prenda. Mas também era corrupção aceitá-la. E o Monge aceitou.
Aceitou um coelho vivo, numa cestinha de verga que, na primeira janela de oportunidade, se pisgou lampeiro, para a segurança do seu ambiente natural.
Aceitou uma caixa de bolachas, que não pôde comer, devido a uma impertinente restrição médica.
Aceitou umas garrafitas de vinho generoso, de cujas delícias não pôde desfrutar, por ser abstémio.
Aceitou uns chocolates, deliciosos, dos de marca, suiços, que se derreteram num ápice, devido à temperatura estival à data do crime.
Nunca falou disto a nínguém, nem antes, nem muito menos agora, quando jorram retaliações terríveis contra infames actos ditos de corrupção.
Mas, precisamente neste dia, veio a saber que, afinal, sempre se podem aceitar prendas. E que os valores das mesmas têm limites. E que visam premiar a excelência do serviço prestado.
Fazendo bem as contas, o Monge foi lesado. Afinal as prendas, de que verdadeiramente não usufruiu, estavam abaixo do limite legalmente consignado. O facto é que, literalmente, o Monge foi roubado.
Apesar disso, congratula-se o Monge. A sua consciência, subitamente, arejou e perdeu peso. Veio a saber também que pode, eventualmente, circular entre serviços. Tudo para evitar uma viciante e ilícita familiaridade com o público que serve. Nada de confiança, que o público é dotado de uma aviltante capacidade de corromper.
A mobilidade será, sem possibilidade de contra-argumentação, benfazeja e até factor de produtividade. Imagine-se: o autarca X a rodar para a autarquia Y; o deputado Z a mudar para a bancada f. o vereador h a mudar para a oposição. O primeiro ministro do partido S a rodar para o partido D. Desculpem, isto já acontecia...
Poderemos, evidentemente, ser confrontados com situações algo inusitadas. O Presidente da Câmara a fazer serviço de recepcionista. O recepcionista a fazer serviço de supremo autarca municipal. Apesar do insólito, convenhamos que a medida é oportuna. E, em termos de produtividade dos serviços será de uma eficácia sem contestação.
A bem da Nação, abaixo a corrupção doentia no funcionalismo. No público, é claro!
Afinal, as desejadas medidas cá estão. Nada de prendas e nada de contacto promíscuo com o público. Cravinho, volta, estás reabilitado.
Ah! Esquecia-me. Aquelas idas e vindas, na Caixa Geral Geral de Depósitos, que o Monge, na sua santa ingenuidade, tomava por idas aos sanitários, devidamente assinalados com Caixa Azul, ou algo do género, vão acabar. Agora é papelinho numerado para todos.
(Sanitários, valha-te Santa Luzia! Sempre as mesmas pessoas e sempre com a mesma diarreia. Sinceramente... Parvo!)
Contra a corrupção, sempre.
Palavra do Monge
Mas, a acrescer a esta espécie de psicose, um sintoma de uma virose pandémica e incurável se manifestou. Intrusivo, invadiu-lhe um órgão nestes novos tempos muito pouco activo, comparável ao malfadado apêndice ou às desconfortáveis amígdalas: a consciência. O Monge partilhava a teoria que, com o desuso, o órgão fina-se. Enganou-se.
O dito órgão não se finou. Pelo contrário, com regularidade crescente, aferroava-lhe a alma e o corpo. Tudo por causa de umas prendas, umas reles mas corruptivas prendas.
O Monge pensava que não devia aceitar as ditas mas, devido ao seu peculiar modo de ser, respondia com cortesia à cortesia. Afinal, era má educação recusar uma prenda. Mas também era corrupção aceitá-la. E o Monge aceitou.
Aceitou um coelho vivo, numa cestinha de verga que, na primeira janela de oportunidade, se pisgou lampeiro, para a segurança do seu ambiente natural.
Aceitou uma caixa de bolachas, que não pôde comer, devido a uma impertinente restrição médica.
Aceitou umas garrafitas de vinho generoso, de cujas delícias não pôde desfrutar, por ser abstémio.
Aceitou uns chocolates, deliciosos, dos de marca, suiços, que se derreteram num ápice, devido à temperatura estival à data do crime.
Nunca falou disto a nínguém, nem antes, nem muito menos agora, quando jorram retaliações terríveis contra infames actos ditos de corrupção.
Mas, precisamente neste dia, veio a saber que, afinal, sempre se podem aceitar prendas. E que os valores das mesmas têm limites. E que visam premiar a excelência do serviço prestado.
Fazendo bem as contas, o Monge foi lesado. Afinal as prendas, de que verdadeiramente não usufruiu, estavam abaixo do limite legalmente consignado. O facto é que, literalmente, o Monge foi roubado.
Apesar disso, congratula-se o Monge. A sua consciência, subitamente, arejou e perdeu peso. Veio a saber também que pode, eventualmente, circular entre serviços. Tudo para evitar uma viciante e ilícita familiaridade com o público que serve. Nada de confiança, que o público é dotado de uma aviltante capacidade de corromper.
A mobilidade será, sem possibilidade de contra-argumentação, benfazeja e até factor de produtividade. Imagine-se: o autarca X a rodar para a autarquia Y; o deputado Z a mudar para a bancada f. o vereador h a mudar para a oposição. O primeiro ministro do partido S a rodar para o partido D. Desculpem, isto já acontecia...
Poderemos, evidentemente, ser confrontados com situações algo inusitadas. O Presidente da Câmara a fazer serviço de recepcionista. O recepcionista a fazer serviço de supremo autarca municipal. Apesar do insólito, convenhamos que a medida é oportuna. E, em termos de produtividade dos serviços será de uma eficácia sem contestação.
A bem da Nação, abaixo a corrupção doentia no funcionalismo. No público, é claro!
Afinal, as desejadas medidas cá estão. Nada de prendas e nada de contacto promíscuo com o público. Cravinho, volta, estás reabilitado.
Ah! Esquecia-me. Aquelas idas e vindas, na Caixa Geral Geral de Depósitos, que o Monge, na sua santa ingenuidade, tomava por idas aos sanitários, devidamente assinalados com Caixa Azul, ou algo do género, vão acabar. Agora é papelinho numerado para todos.
(Sanitários, valha-te Santa Luzia! Sempre as mesmas pessoas e sempre com a mesma diarreia. Sinceramente... Parvo!)
Contra a corrupção, sempre.
Palavra do Monge
quarta-feira, março 18, 2009
domingo, março 01, 2009
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