quinta-feira, julho 20, 2006


O CERCO
Parte I

Millet


Muitos chamavam-lhe oásis, a maioria um anacronismo.
De facto, aquele local era uma espécie de bolha, enquistada no tempo, um exemplo raro de resistência às arremetidas vigorosas da urbe.
Tratava-se de uma quinta. Uma área razoável dividida com rigor geométrico por fiadas de videiras rasteiras. Numa das pontas, a menos produtiva, como outrora convinha, quase desprovida de manta morta, elevava-se um barracão robusto, de paredes grossas em pedra granítica, simbólico bastião de anteriores e heróicas lides de sucessivas gerações de lavradores anónimos mas de obra feita.
Como abertura, apenas a porta, de chapa ondulada e ocre, a única concessão detectável ao assédio inovador do presente.
À sua volta brotavam fantasmagóricas gruas, esguias e arrogantes, no cerne de uma inusitada agitação. Máquinas famintas rugiam, ensurdecedoras, escalavrando impiedosamente o solo, deixando nele as feridas do seu afã destruidor.
E, num prazo extraordinariamente curto, mesmo tomando como padrão a vã efemeridade humana, aquele local ficou cercado. Rodeado de edificações de traçado variável, aparentemente sem vínculo congruente, aquele resquício de um qualquer passado ali jaz, indiferente à sua inquestionável solidão.
Um passante menos assíduo surpreender-se-ia, pois aqueles terrenos não apresentavam o desmazelo característico daqueloutros votados a um impiedoso abandono, invadidos pelo torvelinho desordenado de silvados apostados em comprovar os seus atributos competitivos no jogo desregrado da luta pela vida.
Aquele solo e a vida que ele gerava reflectiam a ordem imposta por mão humana, rara mas sábia. De modo que continuava a apresentar as mutações que o ciclo agrícola exige. Vides podadas a seu tempo, bandeiras do milheiral erguidas em ode à labuta do Homem e à pujança da Natureza.
O Monge

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