segunda-feira, julho 24, 2006

O CERCO
Parte II


" A viúva" , de Teixeira Lopes

Um passante mais regular condoer-se-ia, possivelmente, ao entrever uma figura franzina, trajada de negro, minúscula silhueta por entre o milheiral. Talvez pusesse em causa a força e a persistência que naquele corpo fragilizado de facto residiam.
Um passante conhecido não ousaria esboçar qualquer dúvida acerca da capacidade da artesã daquela obra-prima de sobrevivência. Saberia ler toda uma vida gravada nas rugas daquele rosto magro. Traduziria o brilho daquele olhar profundo de quem muito viveu e viu. Adivinharia as cicatrizes que lhe sulcavam a alma de combatente.
Aquela mulher grudava-se desesperadamente ao passado como forma de resistir à precariedade do presente. Não entendia este ritmo avassalador que a rodeava. Estava definitiva e irremediavelmente ajustada ao ritmo compassadamente marcado pela lua, pelos ciclos das estações, pelo nascer e pelo pôr-do-sol. Nunca o seu pulso fora feito refém de um qualquer relógio. Nunca se deixara subjugar por horários que não fossem os estritamente naturais.
Assumira o negrume da sua viuvez de forma dolorosa e irrevogável. Desta feita, não se tratava apenas de um afeiçoamento cultural, de um perfilhamento cego de costumes ancestrais. De facto, o sentimento de perda que se seguira à morte do seu companheiro atingira-a com uma violência de que nunca se recompusera. A cumplicidade que os unira fora o alento com que enfrentaram e transpuseram, indómitos, dificuldades inumeráveis. Quase sossobrou com a forçada e eterna ausência. Mas a lembrança de uma convivência de muitos anos fora também o elixir da sua recuperação.
Agarrara-se à terra com a força do desespero. E a terra, agradecida, correspondeu-lhe, arrancando-a a um torpor que, a continuar, seria letal. Curvou-se ainda mais sobre os torrões que desmanchava com a ligeireza de décadas de experiência lhe tinham ensinado.
Andar curvada tornara-se a sua postura habitual. Não era apenas o estigma do inexorável desfilar dos anos. Era uma exigência de reverência da terra-mãe. Era o pagamento exigido pela fecundidade. Era um tributo, uma penitência, mas também uma honra e um testemunho.
Mas aquela débil figura reerguia-se quase miraculosamente, deixando vislumbrar todo o carácter, toda a raiva explosiva que dela se apoderava e que deflagrava num estrondoso não a qualquer proposta de negócio daquela parcela de território que era o seu. Mesmo filhos e familiares próximos, que não compreendiam aquela apaixonada ligação a um solo que, para eles, só fazia sentido quando traduzido em números, deixaram de a importunar, de a seduzir com razões que ela jamais compreenderia. Ao fim e ao cabo aquele solo era a sua vida. Abdicar dele seria suicídio.
De modo que aquele local se tornara uma ilha e a viúva a sua exígua população. O passante regular e conhecido admira a sua coragem e a sua persistência. Compreende a sua atitude e o seu modo de estar perante a vida, as suas alegrias e as suas adversidades. Torce para que tal coerência escorrace a superficialidade, o artifício, o vil interesse que se constitui como imagem de marca desta sociedade que idolatra o efémero. Torce para que esta fortaleza continue a resistir ao terrível assédio com pertinácia equivalente.
Palavra do Monge.

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