terça-feira, maio 08, 2007

O Martírio de São Mateus - Caravaggio



A DERIVA DAS ESQUERDAS



Estou neste momento a ouvir António Barreto. Também o estava a ver. Mas ele lançou um tiro que não foi no escuro. Foi um tiro objectivo, directo, intencional. Este tipo de atitudes responsabiliza quem as assume. Tanto mais quanto provêm de uma figura pública e de um programa que detém uma certa ambição: a de constituir uma visão crítica da sociedade portuguesa contemporânea e do processo democrático. Tanto mais quanto provêm de um pessoa com um historial de preocupações e intervenções sociais não negligenciável. Alvejou o alvo costumado: os funcionários públicos.


Foi o suficiente para me fazer correr para este vale de lamentações. É o que faço quando me cheira a injustiça. Disse a pessoa em causa: os funcionários públicos detêm um estatuto de privilégio, estão excessivamente remunerados. Não são demais, mas não são produtivos.


Primeira contra-argumentação: não são os funcionários públicos que detêm privilégios; são os trabalhadores privados que foram, progressivamente, privados de direitos numa espécie de processo retrógrado, insinuado paulatinamente pelas elites económicas. O modelo está no estatuto público, não no privado. Retirar esse estatuto à função pública é contribuir para a deterioração inevitável da sociedade. É uma involução. Os trabalhadores privados ganham pouco, trabalham mais do que a lei e a equidade recomendam. Estão sujeitos à precariedade, à mobilidade, à instabilidade. Coartaram-lhes as possibilidades de associação. Não reinvindicam. Não o podem fazer, embora não lhes faltem motivos. Uma grande lacuna democrática. Restringiram-lhes a capacidade corporativa, essencial num eficaz e paritário processo negocial. Não têm oportunidades para estabelecer um projecto de vida. Isto não é saudável. Isto não é progresso, senhor António Barreto. Se, ao invés daquilo que perfilhava nos seus bons e recomendáveis velhos tempos, pretende uma sociedade sustentada nestes pressupostos, é lá consigo. Mas procede mal!


Segunda contra-argumentação: os funcionários públicos não estão bem remunerados. Alguns funcionários públicos, os colocados em funções de gestão de topo, na maior parte das vezes por nomeação ao sabor das flutuações partidárias, estão excessivamente remunerados. Mais: não estão capacitados para o cargo, porque a sua escolha não postula esse critério como fundamental. Os trabalhadores privados têm maus salários. Alguns privados recebem enormidades. É neste sector que as disparidades são, presentemente, mais significativas. Isto não é evolução, é retrocesso. Mas se tal situação é um facto, que não se transfiram para o sector público as maleitas do sector privado.


Terceira contra-argumentação: os funcionários públicos podem não ser produtivos. No entanto foram responsáveis, anonimamente, pelos maiores progressos sociais posteriores à Revolução. Reduziu-se a mortalidade infantil. Aumentou-se a esperança de vida. Generalizou-se o acesso à saúde, à educação, à justiça. Tudo isto em cerca de três décadas. Quando a maior parte dos países europeus já o tinham feito décadas atrás. Acha pouco? Tudo isto em estruturas muitas vezes inadequadas, com processos morosos de responsabilidade política. Não dos ditos funcionários. Se são pouco produtivos, não é porque não trabalhem, é porque as elites dirigentes não detêm competência para "agilizar" o sistema.


Por agora basta.


Palavra do Monge


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