sexta-feira, julho 25, 2008

JULHO DE 2020

A Day Is Coming

Miriam Neiger




Memórias. O Monge agora vive de memórias. Sorve-as avidamente, reconhecendo nelas a muleta da sua própria sobrevivência. Sem elas, a sua vida explodiria num mar de trevas, tal qual o derradeiro flop de uma antiga lâmpada de filamento. Como testemunho da inevitável caducidade da chama, sobreviveria um fragmento de vidro chamuscado por um inestético e anónimo pó negro, naquele retorno cíclico e incontornável à matéria-prima do acto da Criação.



Memórias. O Monge assume o seu indeclinável papel de Transmissor. Como lhe soa estranhamente esta palavra, quando confrontada com as reminiscências de uma florescente civilização, cujo principal impulso era o acesso instantâneo à informação e ao conhecimento. Tinha sido a Era dos Prodígios, bela mas incompreensivelmente efémera.



No entanto, a sua audiência bebia-lhe a voz, os gestos e o olhar. O Monge sentia que acreditavam, pois as crianças sempre foram crédulas, apenas exigindo em troca que o interlocutor detivesse o mágico dom de cativar.



Para o Monge este exercício de sedução era relativamente fácil. Bastava relatar a verdade que, neste caso, ultrapassava qualquer ficção.



E, em palavras simples, falava-lhes dos grandes pássaros de ferro que outrora cruzavam os céus, com o bojo prenhe de pessoas para as quais aquele privilégio era coisa rotineira. Falava-lhes de caixas volantes que cruzavam países com a força e a liberdade do vento. E falava-lhes ainda do precioso líquido que os alimentava e que se sumira, num ápice, deixando todos perplexos, de consciência pesada com a culpa da sua incomensurável displicência e sofreguidão.



Memórias. Para o Monge, ente privilegiado por viver muito em pouco tempo, o insuperável problema esteve e estará na retenção, passagem e, sobretudo, valorização do testemunho. Outrora, em eras a perder de vista, quase sempre se dera o devido valor àqueles cuja face fora retalhada pela inexorável erosão da idade. Eram eles, por força de uma palavra sustentada em boas e más experiências, em relatos ouvidos e conservados com o desvelo de quem lida com o sagrado, que asseguravam a sequencialidade do saber.



Por mero acaso, o Monge fora espectador e interveniente dos fenómenos que emergiram na Era dos Prodígios. Fora submerso pela convulsão social dos Últimos Anos, os da decadência. Depois assistira ao rápido retrocesso a comunidades cada vez mais isoladas, que tiveram que reaprender as técnicas da auto-suficiência. A Globalização sumira-se tal como aparecera, num ápice. E a Humanidade chorara o que perdera e que tivera ao seu alcance: o bem-estar para todos e para cada um, objectivo desfeito pela sua ancestral tendência à cupidez e ao individualismo.



Memórias. E num mágico cenário de olhos brilhantes, que reflectiam o tremular da reconfortante fogueira, as crianças escutam palavras de um outro mundo, que reproduziriam, cada qual à sua maneira, quando os seus olhos paulatinamente se cerrassem, cedendo lugar ao sono, ao sonho e a um cândido sorriso. O Monge continuou, solitário e meditabundo, perscrutando o céu estrelado, à cata de um qualquer improvável relampejar em movimento: um jacto da Era dos Prodígios. Até que a sua derradeira esperança se apague, como o brasido que se consome à sua frente.



Palavra do Monge

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