segunda-feira, agosto 29, 2005
terça-feira, agosto 23, 2005
quinta-feira, agosto 18, 2005
quinta-feira, agosto 11, 2005
A CASA DA FRONTEIRA
Parte III
Desde inícios de Setembro, invariavelmente, aquele homem seguia as mesmas rotinas. Era um ritual penoso que ele cumpria com a consciência da sua inevitabilidade. Todas as segundas-feiras, bem cedo, se deslocava sozinho para sul, com uma mala com as roupas necessárias a uma semana de ausência. Era noite quando saía de casa. Seria noite quando a ela regressasse, sempre seguindo um caminho de sombras, que lhe dissimulava o percurso, sem lhe aliviar o espírito.
De véspera, despedia-se da mulher e dos filhos, uma vivência sempre dolorosa, mas que ele tentava atenuar com uma jovialidade que de facto não sentia. A partir daquele momento, a saudade começava a impor-se no seio daquele grupo de uma forma peculiar, pois era uma saudade antecipada, que se manifestava não exclusivamente em momentos de ausência, mas também, e paradoxalmente, estando todos ali, bem juntos, no âmago da casa fronteiriça.
Umas quantas horas mais tarde, chegava ao local de trabalho pouco predisposto para o concretizar. Naquele país, o país do sul, um projecto eternamente em fase de esboço, apenas ele e os colegas entreviam a importância da profissão que desempenhavam, o seu intrínseco e indeclinável valor.
sexta-feira, agosto 05, 2005
a) A Saga da Casa da Fronteira terá continuação.
quinta-feira, agosto 04, 2005
quarta-feira, agosto 03, 2005
Metade da casa, a parte norte, mostrava um exterior agradável, com fachadas pintadas numa ténue tonalidade amarelada, uniforme, atestando a sua qualidade e a sua recente aplicação. Janelas de alumínio lacado e vidraças duplas emparceiravam com varandas pintadas de verde, também uniforme e com idêntica atestação. Um viçoso relvado, bem aparado, entremeado com tufos floridos, de cores perfeitamentamente integradas, predispunha-o como excelente local de lazer e óptima antecâmara para uma privacidade sem grades, para um recolhimento sem medos.
A outra metade, em perfeita simetria, era a sua antítese. As paredes reflectiam os maus tratos do tempo e o desmazelo dos homens. Pedaços do revestimento tinham desaparecido, colocando a nu inestéticas feridas, manchas entre outras manchas de um tom baço, desmaiado, cuja original tonalidade era indetectável. As janelas, de guilhotina, certamente há muito que não eram abertas, pois ameaçavam desconjuntar-se a qualquer momento. Vidraças rachadas, suspensas na caixilharia por artes do demo ou de um piedoso acaso, enquadravam-se perfeitamente na imagem de declínio generalizado. As varandas, envergonhadas da sua nudez, coravam em tons aleatórios de um ferruginoso ocre.
O jardim, esse, não existia. A vegetação, descontrolada, crescia em selvagem obediência às leis naturais. Notava-se a ausência de mão humana, que colocasse nexo, ordem, criatividade, na balbúrdia reinante. Sinais de presença humana, apenas um carreiro que apontava à porta degradada, de onde as ervas tinham sido arredadas pela regularidade de um qualquer pisotear.
segunda-feira, agosto 01, 2005
O Monge fica estarrecido com o uso abusivo do vocábulo "Povo". Os políticos da nossa praça, e não só, usam e abusam dessa palavra, pressupondo a sua unidade. Dá-lhes jeito, pois cria uma falsa sensação de unanimismo. "Povo" seria assim entendido como a generalidade da população, nos casos em apreço, imbuída da mesma opinião do fervoroso orador e ardoroso político. Este entendimento implica a legitimidade da acção, assente não na maioria, mas na totalidade dos cidadãos. É uma ideia perigosa, pouca condigna com a diversidade democrática e uma rotunda falácia. Para além disso, é uma atitude desrespeitadora da inteligência do público potencial.
Frequentemente, é utilizada a alternativa "Portugueses". Portugueses há-os de todos os gostos e para todos os gostos: altos, gordos, magros, brancos e noutras tonalidades, fachos, comunas e assim-assim, activos e apáticos, condescendentes e intolerantes. Tão diferentes entre si que o Monge pode afirmar com plena certeza que não existem dois iguais.
Fundamentalmente, o "Povo" abrange uma população com uma profunda diversidade de interesses. Fundamentalmente, o "Povo" mexe e remexe, convulsiona-se, entrechoca. O "Povo" é uma dinâmica, não uma entidade estática. É uma multiplicidade de lutas, de combates em permanência. Os compromissos são possíveis, pontuais ou mais duráveis, ou mesmo impossíveis. Com(n) fusões de interesses comuns contra outro ou outros grupos de interesses comuns, mas antagónicos.
O termo Povo é especialmente usado em momentos historicamente significativos, especialmente caracterizados pela convulsão social, reiterada ciclicamente. Como exemplos, o Monge aponta a revolução francesa, a revolução de Outubro, a nossa revolução de Abril. São momentos em que os antagonismos sociais emergem com particular e estrondosa violência. São ocasiões de ruptura, de colisões fracturantes de interesses. É a lei selvagem e Darwinista da selecção natural aplicada às tensões sociais. É um desespero retórico tentando unificar o inconciliável. Estranho paradoxo este: falar do Povo e para o Povo, quando esta pretensa entidade está mais que nunca dividida, estraçalhada, retalhada em facções que se digladiam furiosamente.
"Portugueses", vós sabeis que não sois uma unidade, que os vossos interesses, eventualmente, muito possivelmente, divergem do vizinho do lado. Por cá o Monge desconfia. Os nossos representantes repetem, com uma frequência preocupante, os termos em causa. Serão os sopros prenunciadores de uma forte borrasca social? À cautela, o Monge vai afiando o lápis e a sua verve. Pois é. Palavra do Monge.