segunda-feira, agosto 29, 2005

A EXTORSÃO DE DIREITOS ADQUIRIDOS
O Monge anda, desde há algum tempo, agitado, nervoso, irrascível. Está na sua maneira de ser reagir contra qualquer tipo de injustiça. Por isso, não podia deixar de arremessar a sua palavra contra o destempero de um governo que sonega direitos a um sector da população activa que tem sido o bombo da festa nos últimos anos: os funcionários públicos.
Falemos claramente. Estes trabalhadores são os agentes que contribuem para o funcionamento do Estado. Mais do que isso, asseguram a concretização das medidas do Estado Social, uma emergência preciosa da organização social europeia do pós guerra. Este Estado Social tem como uma das suas missões assegurar serviços a toda a população, particularmente àqueles que não vislumbram uma nesga de oportunidade na melhoria da sua qualidade de vida. O Estado consegue isso assumindo-se como entidade mediadora e reguladora, dotando-se da autoridade e dos meios que assegurem uma adequada redistribuição da riqueza. Os funcionários públicos vêm assim justificada a sua inegável função social.
Foram-lhes, num ápice, extorquidos direitos adquiridos, a saber: alterações na progressão da carreira e na idade da reforma. E tudo isto, por um governo socialista que, sem quaisquer tipo de escrúpulos visíveis, renega expeditamente a sua vocação social. O Monge presenciou e avaliou os aplausos generalizados a tais medidas. Não ficou surpreso, pois conhece a natureza humana: uns aplaudem porque valores mais altos se levantam: os seus, em consonância com a sua dependência de entidades com grande poder interventivo, que lhes ditam o que dizer, o que pensar, o que fazer - o sector empresarial de topo; os restantes aplaudem porque com o mal dos outros podem eles bem, com o bem dos outros, sentem náuseas, vómitos, diarreias e outros males preocupantes.
O monge ouviu, essencialmente, dois tipos de justificações injustificadas. A longevidade humana prolongou-se, as pessoas duram demais e isso é um mal. Por causa deste novo pecado original, devem ser punidos com mais tempo de trabalho. Assim, sem mais nem menos, surge uma nova teologia, caracterizada pela sua extrema ortodoxia. Os seus ditames não se expressam em latim vernáculo, mas em inglês macarrónico. Qualquer pessoa com dois dedos de testa sabe que o aumento de longevidade não se traduz necessariamente em acréscimo de produtividade. O Monge avança mesmo mais. Afirma, sem qualquer hesitação, que o ritmo exacerbado dos tempos que correm reduz, sem apelo nem agravo, o período em que um indivíduo activo mostra um nível de produtividade à medida do sempre sôfrego mundo empresarial.
O Monge ouviu ainda as alusões a um minguado saldo da segurança social. Ele sabe que, se esse saldo não se mostra ainda mais minguado, para tal concorreram, as contribuições, sempre certinhas e pontuais, dos citados funcionários. Mas, desta vez, assevera que não ouviu um único aplauso agradecido. O Monge garante que, do outro lado da barricada, do dito sector privado, desde a base até ao topo da pirâmide salarial, a grande maioria se escusa sistematicamente a pôr em dia os seus deveres contributivos. Se o governo quiser, investigue, revele e puna os milhões de recalcitrantes. Terá descoberto, então, a árvore das patacas que se furta a uma miopia exasperante, comum a uma sucessão de governos endemicamente afectados.
A retórica reinante sobre a terminologia direitos adquiridos é vã, oca, e infestada de má fé. É evidente que os funcionários ususfruiam de direitos, pois aqueles contextualizavam-se em letra de lei. Eram direitos, no mesmo sentido em que há o direito ao acesso à justiça , ou à saúde. Eram adquiridos, por isso lá estavam, sob a forma de lei. Não se adquire o que não existe. Houve um processo, longo de anos, que levou à sua inclusão no corpo normativo. Foi fácil destruir o que levou décadas a consolidar-se. Destruir é sempre fácil: a história dá-nos numerosos e fartos exemplos disso mesmo.
O Monge reconhece o desencanto dos funcionários públicos. As suas expectativas, os seus projectos de vida desabaram fragorosa e doloridamente. Uma das finalidades do direito foi abominavelmente omitida. As leis existem, também, para conferir segurança e estabilidade, mesmo a longo prazo. Não podemos ser coniventes com uma precaridade, obviamente perniciosa, que alguns querem estabelecer como uma inevitabilidade.
Quanto ao governo será, mais tarde ou mais cedo, julgo que mais cedo, punido por acções e intenções. Que saiba apreciar os prenúncios de um divórcio consumado com o país real. Que saiba avaliar e agir. Por aqui, estamos conversados. Palavra do Monge.

terça-feira, agosto 23, 2005

A CASA DA FRONTEIRA

PARTE V
Naquela mesma segunda-feira, a mulher saiu da parte norte da casa da fronteira, bastante mais tarde que o seu companheiro. Ao fim e ao cabo, o seu local de trabalho ficava apenas a cerca de cinco quilómetros, distância que ela percorria num ápice, conduzindo um carro discreto, adquirido há cerca de dois anos, confortável e seguro. Na ressaca da periódica separação a que nunca se habituava, episódios deliciosos irrompiam do passado e surgiam-lhe na memória, impressionantemente vivos, quase reais.
Ali perto, a linha de fronteira dividia a meio um rio, metade do país do sul, metade do país do norte. Assim que o calor apertava um pouco, ambas as margens eram invadidas pelos gritos, pelas risadas, pelas brincadeiras de jovens banhistas. Ambas as margens os viam crescer, ano após ano, até que alguns deles debandavam, empurrados pelas suas próprias expectativas, à procura do seu próprio destino, na tarefa árdua e sempre ambiciosa que é o esboço de um qualquer futuro.
Ao meio do rio, postada exactamente ao centro, emergia um pequena ilha, seccionada pela linha de fronteira. O seu lado norte acolhia um pequeno areal. O seu lado sul, uma fraga de superfície aplanada por caudais consecutivos de cheias invernais. Separando as duas partes, alguns arbustos e uma velha árvore, que teimava em se agarrar, com a determinação ditada por anos e anos de luta ardorosa pela sobrevivência, àquela nesga de areia e rocha.
Aquela tira de areia era, então, o local predilecto daquela mulher, o retiro da sua adolescência, local de meditação sobre questões que a vida lhe ia consagrando em catadupa. Assim, todos os dias, após o convívio a que não se furtava com os amigos, ela nadava até à ilha que tinha como sua, estendia-se no pequeno areal e cerrava os olhos. Apreciava, com deleite, o calor do sol sobre o seu corpo molhado. E pensava. Reflectia sobre coisas aparentemente banais, mas que então lhe eram inacreditavelmente caras, sonhos que guardava só para si, segredos como jóias que se escondem para momentos reservados de prazer egoísta e solitário.
Todos os dias, partindo da margem sul, o seu companheiro actual furtava-se por momentos às brincadeiras costumadas e dirigia-se para a mesma ilha, fazendo sua a fraga lisa. Um desses dias, levara, envolto em dois ou três sacos plásticos, um livro que bebia com sofreguidão. Chegada a hora do regresso, escondia o livro num toco da árvore velha, com as cautelas de quem esconde um velho e raro pergaminho.
De forma que, sem o saberem, aquelas duas almas foram partilhando, de costas voltadas, a ilha da fronteira. Gozavam prazeres só seus, não antevendo quaisquer possibilidades de partilha. Ignoravam o chiste que a vida tem, a malícia contida nas suas piruetas surpreendentes.

quinta-feira, agosto 18, 2005

A CASA DA FRONTEIRA

Parte IV

Todas as segundas-feiras, fazendo provas de um ânimo que lhe escapava, encarava aqueles dezassete rostos de crianças que reconheciam nele, ainda que de forma inconsciente, um dos seus modelos significativos. Esta circunstância acrescia-lhe as responsabilidades, num estado interior de desmotivação generalizada que ele temia se tornasse crónico e, consequentemente, irreversível.
Olhava à sua volta e o espaço físico reflectia a degradação, um mal compartilhado com a parcela sul da sua habitação. Olhava o espaço e revia-se, ali, cerca de vinte e quatro anos atrás, numa sala com igual mobiliário, equipamento similar, só que mais novo, ainda não envelhecido e deteriorado pelo uso. As obras na escola foram sempre poucas e de recurso. Naquela sala, apegado à velha parede, lá estava o mesmo quadro das suas memórias, bocadinhos de giz e um apagador, esquecido da sua real função, de tão desgastado que estava. Ao fundo, os armários de madeira originais, com uma chapazinha no cimo, com uns escritos indecifráveis, gingavam e chiavam, resmungões na sua senilidade, ao mínimo encontrão. Que os respeitassem na sua provecta idade, que bem o mereciam. Aqui e além uma mancha escura no soalho testemunhava infiltrações frequentes e indesejáveis. Era a imagem de marca do país do sul.
Sinal de modernidade apenas um computador e uma impressora. A vanguarda da tecnologia tinha arribado ali, com pompa e circunstância. Um para tantos...
Ele, o professor, procurara sinais do investimento tão proclamado no ciclo em que leccionava: o primeiro. Surgiram-lhe vagos rumores de vagas preocupações, lá na década de noventa, sem efeito prático manifesto e visível.
Reformas no ensino, essas sim, foram muitas, tantas que já lhes perdera a conta, Tantas quantas os ministros, e também sem efeito prático e visível. Ele, o professor, conhecia os segredos do insucesso. O desinvestimento era sem dúvida um deles. Instalações e equipamentos condignos, actuais, adequados à função, estética e funcionalmente atraentes, nem vê-los. Os fundos estruturais a tal destinados eram voláteis, sumiram, desviaram-se, perdidos em não se sabe que ínvios desatinos. O diálogo franco, produtivo, com os verdadeiros especialistas da educação, os professores, de facto nunca existiu. Ouviram-se os papás, sempre interventivos, à procura de mais umas horas de encarceramento coercivo dos seus descendentes, à cata de mais uns momentos de desresponsabilização das suas obrigações paternais. Ouviram-se economistas e outros notáveis fazer alarde do seu saber enciclopédico. Ouviram-se comentadores, outros oradores e escribas, opinando em catadupa em discursos feitos por encomenda dos seus reverendos donos. Mas os professores, esses, não se ouviram, pois as verdades podem ser tremendamente embaraçosas. O chumbo foi considerado um crime e, por consequência, camuflada e diplomaticamente proibido. O facilitismo foi institucionalizado por decreto. Ao nono ano, os chumbos, esses, desabaram fragorosamente sobre o país do sul, surpreendendo todos, menos os professores.

quinta-feira, agosto 11, 2005

A CASA DA FRONTEIRA

Parte III

Desde inícios de Setembro, invariavelmente, aquele homem seguia as mesmas rotinas. Era um ritual penoso que ele cumpria com a consciência da sua inevitabilidade. Todas as segundas-feiras, bem cedo, se deslocava sozinho para sul, com uma mala com as roupas necessárias a uma semana de ausência. Era noite quando saía de casa. Seria noite quando a ela regressasse, sempre seguindo um caminho de sombras, que lhe dissimulava o percurso, sem lhe aliviar o espírito.

De véspera, despedia-se da mulher e dos filhos, uma vivência sempre dolorosa, mas que ele tentava atenuar com uma jovialidade que de facto não sentia. A partir daquele momento, a saudade começava a impor-se no seio daquele grupo de uma forma peculiar, pois era uma saudade antecipada, que se manifestava não exclusivamente em momentos de ausência, mas também, e paradoxalmente, estando todos ali, bem juntos, no âmago da casa fronteiriça.

Umas quantas horas mais tarde, chegava ao local de trabalho pouco predisposto para o concretizar. Naquele país, o país do sul, um projecto eternamente em fase de esboço, apenas ele e os colegas entreviam a importância da profissão que desempenhavam, o seu intrínseco e indeclinável valor.


sexta-feira, agosto 05, 2005

Anotações:

a) A Saga da Casa da Fronteira terá continuação.

b) O Monge passou o dia embebido numa atmosfera pesada, campacta, cor de chumbo. Era uma ambiência surreal. A cidade asfixiava num nevoeiro contrário à sua natureza: não refrescava corpos, mas amolecia ânimos. A cidade estava sujeita a um chuvisco invulgar. Não era a água benfazeja e tão avidamente desejada que tombava. Eram fagulhas esbranquecidas, ainda mornas, assinaturas vivas da calamidade de algures. Notícias pouco frescas de dramas mais ou menos anónimos. Pequeninas pedras pomes em que se transformou o suor de muitos. Esta atmosfera não se respira, corta-se à faca e mastiga-se. É um filme por demais visto. Um suplício implacável e tantas vezes repetido, que gera indiferença. Não devia ser assim.
Parece que as próprias andorinhas, tão infatigáveis no seu eterno afã também se cansaram. Repousam, alinhadas rigorosamente numa varanda vizinha. Ou será que escutam a Chamada, o apelo do Sul. Tão cedo? Necessariamente este país está a perder a hospitalidade, por muitos considerada como imagem de marca.
c) Da Ucrânia vem um testemunho da facilidade com que as leis do capitalismo neoliberal, disseminado pela globalização, são assimiladas por alguns cidadãos dos países de leste. A corrupção entranha-se num ápice e descaradamente no tecido social. Qualquer oportunidade é aproveitada de imediato. Agora são bandeiras, bandeirinhas, camisolas, canecas e outros acessórios, todos laranjinhas, de ex-campanhas de luta político-ideológica que se vendem de forma organizada, por familiares dos detentores do poder. O sucesso deste modelo neoliberal reside na sua coincidência, ponto a ponto, com a natureza mais crua e selvagem do ser humano. Em termos evolutivos, entendidos como desenvolvimento da consciência social do indivíduo, é o descalabro. Assim não vamos lá. O egoismo espalha-se e consome valores fundamentais tão indiferentemente como as línguas de fogo vão consumindo bens. É fácil ser egoista, está nos genes de cada qual. A solidariedade, a tolerância, são facilmente esquecidos, desaparecem do léxico e das práticas. Isso é mau.
d) Uma última referência se impõe. 60 anos após a deflagração da bomba de Hiroxima continuam a morrer inocentes por iniciativa declarada dos senhores da guerra. Necessariamente, o Homem não aprende com os seus erros. A sua memória é curta e a sua vontade volúvel.
Palavras do Monge

quinta-feira, agosto 04, 2005

A CASA DA FRONTEIRA

Parte II
No interior da habitação, a linha de fronteira continuava, inabalável, o seu percurso e a sua função: separar mundos, apartar destinos, demarcar territórios. Por coincidência ou não, dividia o leito conjugal rigorosamente em dois. A parte norte, para a mulher. A parte sul para o homem. E mesmo aqui as diferenças eram penosamente evidentes. Do lado da mulher, uma mesinha de cabeceira de traços bem lançados, moderna, atraente, ataviada com um paninho bordado, simples, mas com gosto. Um candeeiro, com idêntico estilo, inundava a parte norte do quarto com um luz suave, atenuada na justa medida por um quebra-luz creme. Ainda sobre a mesinha, um livro, no interior do qual um marcador estava habituado a mudar de poiso frequentemente. No local certo, um tapete macio prevenia o contacto brusco dos pés nus com as tabuinhas lustrosas do soalho.
Do lado sul, do lado do homem, o contraste chocava. Ao lado da cama um banco rude, despojado de verniz ou tinta, cuja cor natural tinha sido mascarrada pelo uso e pela inevitável passagem do tempo. No assento, um castiçal manchado pela cera que escorria, lacrimejante, de uma vela já curta. Amontoados, num desleixo, enxergavam-se comprimidos, que um olhar entendido poderia identificar como sedativos, ansiolíticos, anti depressivos... remédios recentes para velhos e irremediáveis males. Naquela luminosidade exígua, sacudida, aos repelões, entrevia-se, a um canto, uma cadeira para onde roupas tinham sido lançadas descuidadamente. O espaço sobrante era partilhado por uma tigelinha de bordos lascados, por um rústico pincel, um pedacinho de sabão e um espelho orlado de azul, já estalado. Ao lado da cama, o único sinal de conforto era um par de chinelos, desirmanados, de pontas há muito laceradas.
Este estranho casal tinha sido brindado com dois filhos: um casalinho que a linha de fronteira teimava em separar. O quarto do primogénito, um rapaz, ficava no lado sul. O quarto da rapariga, em perfeita simetria, erguia-se no lado norte. As diferenças continuavam manifestas: um extremo conforto, no quarto norte, e uma extrema parcimónia, no quarto sul.
Surpreendentemente, aquelas quatro almas não tinham sucumbido às intenções, inconscientes mas persistentes, da linha da fronteira. Até àquela altura, tinha sabido manter-se imunes ao apelo persistente, atroador, à separação, ao chamamento contínuo de dois mundos, tão diversos como inconciliáveis.
Não se poderia dizer que eram felizes, mas batiam-se denodada e orgulhosamente pela conquista da felicidade. Sabiam que a felicidade é esquiva, furtiva, escorregadia. Gosta de ser seduzida, goza o momento da sedução mas, logo após, volúvel, foge-nos por entre os dedos. Por isso sabiam que, de facto, a felicidade não existe, mas apenas momentos felizes.
O Monge

quarta-feira, agosto 03, 2005

A CASA DA FRONTEIRA

Era um edifício deveras singular. Começava por estar posicionado exactamente sobre a linha da fronteira. Era uma linha imaginária, mas implacável. Rectilínea, não abdicava desse estatuto. Cortava a direito, alheia à inexorabilidade das consequências que ditava.
Metade da casa, a parte norte, mostrava um exterior agradável, com fachadas pintadas numa ténue tonalidade amarelada, uniforme, atestando a sua qualidade e a sua recente aplicação. Janelas de alumínio lacado e vidraças duplas emparceiravam com varandas pintadas de verde, também uniforme e com idêntica atestação. Um viçoso relvado, bem aparado, entremeado com tufos floridos, de cores perfeitamentamente integradas, predispunha-o como excelente local de lazer e óptima antecâmara para uma privacidade sem grades, para um recolhimento sem medos.
A outra metade, em perfeita simetria, era a sua antítese. As paredes reflectiam os maus tratos do tempo e o desmazelo dos homens. Pedaços do revestimento tinham desaparecido, colocando a nu inestéticas feridas, manchas entre outras manchas de um tom baço, desmaiado, cuja original tonalidade era indetectável. As janelas, de guilhotina, certamente há muito que não eram abertas, pois ameaçavam desconjuntar-se a qualquer momento. Vidraças rachadas, suspensas na caixilharia por artes do demo ou de um piedoso acaso, enquadravam-se perfeitamente na imagem de declínio generalizado. As varandas, envergonhadas da sua nudez, coravam em tons aleatórios de um ferruginoso ocre.
O jardim, esse, não existia. A vegetação, descontrolada, crescia em selvagem obediência às leis naturais. Notava-se a ausência de mão humana, que colocasse nexo, ordem, criatividade, na balbúrdia reinante. Sinais de presença humana, apenas um carreiro que apontava à porta degradada, de onde as ervas tinham sido arredadas pela regularidade de um qualquer pisotear.
O Monge - Parte I

segunda-feira, agosto 01, 2005

Povo: unicidade do significante; diversidade do significado

O Monge fica estarrecido com o uso abusivo do vocábulo "Povo". Os políticos da nossa praça, e não só, usam e abusam dessa palavra, pressupondo a sua unidade. Dá-lhes jeito, pois cria uma falsa sensação de unanimismo. "Povo" seria assim entendido como a generalidade da população, nos casos em apreço, imbuída da mesma opinião do fervoroso orador e ardoroso político. Este entendimento implica a legitimidade da acção, assente não na maioria, mas na totalidade dos cidadãos. É uma ideia perigosa, pouca condigna com a diversidade democrática e uma rotunda falácia. Para além disso, é uma atitude desrespeitadora da inteligência do público potencial.
Frequentemente, é utilizada a alternativa "Portugueses". Portugueses há-os de todos os gostos e para todos os gostos: altos, gordos, magros, brancos e noutras tonalidades, fachos, comunas e assim-assim, activos e apáticos, condescendentes e intolerantes. Tão diferentes entre si que o Monge pode afirmar com plena certeza que não existem dois iguais.
Fundamentalmente, o "Povo" abrange uma população com uma profunda diversidade de interesses. Fundamentalmente, o "Povo" mexe e remexe, convulsiona-se, entrechoca. O "Povo" é uma dinâmica, não uma entidade estática. É uma multiplicidade de lutas, de combates em permanência. Os compromissos são possíveis, pontuais ou mais duráveis, ou mesmo impossíveis. Com(n) fusões de interesses comuns contra outro ou outros grupos de interesses comuns, mas antagónicos.
O termo Povo é especialmente usado em momentos historicamente significativos, especialmente caracterizados pela convulsão social, reiterada ciclicamente. Como exemplos, o Monge aponta a revolução francesa, a revolução de Outubro, a nossa revolução de Abril. São momentos em que os antagonismos sociais emergem com particular e estrondosa violência. São ocasiões de ruptura, de colisões fracturantes de interesses. É a lei selvagem e Darwinista da selecção natural aplicada às tensões sociais. É um desespero retórico tentando unificar o inconciliável. Estranho paradoxo este: falar do Povo e para o Povo, quando esta pretensa entidade está mais que nunca dividida, estraçalhada, retalhada em facções que se digladiam furiosamente.
"Portugueses", vós sabeis que não sois uma unidade, que os vossos interesses, eventualmente, muito possivelmente, divergem do vizinho do lado. Por cá o Monge desconfia. Os nossos representantes repetem, com uma frequência preocupante, os termos em causa. Serão os sopros prenunciadores de uma forte borrasca social? À cautela, o Monge vai afiando o lápis e a sua verve. Pois é. Palavra do Monge.