A CASA DA FRONTEIRA
PARTE V
Naquela mesma segunda-feira, a mulher saiu da parte norte da casa da fronteira, bastante mais tarde que o seu companheiro. Ao fim e ao cabo, o seu local de trabalho ficava apenas a cerca de cinco quilómetros, distância que ela percorria num ápice, conduzindo um carro discreto, adquirido há cerca de dois anos, confortável e seguro. Na ressaca da periódica separação a que nunca se habituava, episódios deliciosos irrompiam do passado e surgiam-lhe na memória, impressionantemente vivos, quase reais.
Ali perto, a linha de fronteira dividia a meio um rio, metade do país do sul, metade do país do norte. Assim que o calor apertava um pouco, ambas as margens eram invadidas pelos gritos, pelas risadas, pelas brincadeiras de jovens banhistas. Ambas as margens os viam crescer, ano após ano, até que alguns deles debandavam, empurrados pelas suas próprias expectativas, à procura do seu próprio destino, na tarefa árdua e sempre ambiciosa que é o esboço de um qualquer futuro.
Ao meio do rio, postada exactamente ao centro, emergia um pequena ilha, seccionada pela linha de fronteira. O seu lado norte acolhia um pequeno areal. O seu lado sul, uma fraga de superfície aplanada por caudais consecutivos de cheias invernais. Separando as duas partes, alguns arbustos e uma velha árvore, que teimava em se agarrar, com a determinação ditada por anos e anos de luta ardorosa pela sobrevivência, àquela nesga de areia e rocha.
Aquela tira de areia era, então, o local predilecto daquela mulher, o retiro da sua adolescência, local de meditação sobre questões que a vida lhe ia consagrando em catadupa. Assim, todos os dias, após o convívio a que não se furtava com os amigos, ela nadava até à ilha que tinha como sua, estendia-se no pequeno areal e cerrava os olhos. Apreciava, com deleite, o calor do sol sobre o seu corpo molhado. E pensava. Reflectia sobre coisas aparentemente banais, mas que então lhe eram inacreditavelmente caras, sonhos que guardava só para si, segredos como jóias que se escondem para momentos reservados de prazer egoísta e solitário.
Todos os dias, partindo da margem sul, o seu companheiro actual furtava-se por momentos às brincadeiras costumadas e dirigia-se para a mesma ilha, fazendo sua a fraga lisa. Um desses dias, levara, envolto em dois ou três sacos plásticos, um livro que bebia com sofreguidão. Chegada a hora do regresso, escondia o livro num toco da árvore velha, com as cautelas de quem esconde um velho e raro pergaminho.
De forma que, sem o saberem, aquelas duas almas foram partilhando, de costas voltadas, a ilha da fronteira. Gozavam prazeres só seus, não antevendo quaisquer possibilidades de partilha. Ignoravam o chiste que a vida tem, a malícia contida nas suas piruetas surpreendentes.
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