A CASA DA FRONTEIRA
Parte II
No interior da habitação, a linha de fronteira continuava, inabalável, o seu percurso e a sua função: separar mundos, apartar destinos, demarcar territórios. Por coincidência ou não, dividia o leito conjugal rigorosamente em dois. A parte norte, para a mulher. A parte sul para o homem. E mesmo aqui as diferenças eram penosamente evidentes. Do lado da mulher, uma mesinha de cabeceira de traços bem lançados, moderna, atraente, ataviada com um paninho bordado, simples, mas com gosto. Um candeeiro, com idêntico estilo, inundava a parte norte do quarto com um luz suave, atenuada na justa medida por um quebra-luz creme. Ainda sobre a mesinha, um livro, no interior do qual um marcador estava habituado a mudar de poiso frequentemente. No local certo, um tapete macio prevenia o contacto brusco dos pés nus com as tabuinhas lustrosas do soalho.
Do lado sul, do lado do homem, o contraste chocava. Ao lado da cama um banco rude, despojado de verniz ou tinta, cuja cor natural tinha sido mascarrada pelo uso e pela inevitável passagem do tempo. No assento, um castiçal manchado pela cera que escorria, lacrimejante, de uma vela já curta. Amontoados, num desleixo, enxergavam-se comprimidos, que um olhar entendido poderia identificar como sedativos, ansiolíticos, anti depressivos... remédios recentes para velhos e irremediáveis males. Naquela luminosidade exígua, sacudida, aos repelões, entrevia-se, a um canto, uma cadeira para onde roupas tinham sido lançadas descuidadamente. O espaço sobrante era partilhado por uma tigelinha de bordos lascados, por um rústico pincel, um pedacinho de sabão e um espelho orlado de azul, já estalado. Ao lado da cama, o único sinal de conforto era um par de chinelos, desirmanados, de pontas há muito laceradas.
Este estranho casal tinha sido brindado com dois filhos: um casalinho que a linha de fronteira teimava em separar. O quarto do primogénito, um rapaz, ficava no lado sul. O quarto da rapariga, em perfeita simetria, erguia-se no lado norte. As diferenças continuavam manifestas: um extremo conforto, no quarto norte, e uma extrema parcimónia, no quarto sul.
Surpreendentemente, aquelas quatro almas não tinham sucumbido às intenções, inconscientes mas persistentes, da linha da fronteira. Até àquela altura, tinha sabido manter-se imunes ao apelo persistente, atroador, à separação, ao chamamento contínuo de dois mundos, tão diversos como inconciliáveis.
Não se poderia dizer que eram felizes, mas batiam-se denodada e orgulhosamente pela conquista da felicidade. Sabiam que a felicidade é esquiva, furtiva, escorregadia. Gosta de ser seduzida, goza o momento da sedução mas, logo após, volúvel, foge-nos por entre os dedos. Por isso sabiam que, de facto, a felicidade não existe, mas apenas momentos felizes.
O Monge
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