quinta-feira, agosto 18, 2005

A CASA DA FRONTEIRA

Parte IV

Todas as segundas-feiras, fazendo provas de um ânimo que lhe escapava, encarava aqueles dezassete rostos de crianças que reconheciam nele, ainda que de forma inconsciente, um dos seus modelos significativos. Esta circunstância acrescia-lhe as responsabilidades, num estado interior de desmotivação generalizada que ele temia se tornasse crónico e, consequentemente, irreversível.
Olhava à sua volta e o espaço físico reflectia a degradação, um mal compartilhado com a parcela sul da sua habitação. Olhava o espaço e revia-se, ali, cerca de vinte e quatro anos atrás, numa sala com igual mobiliário, equipamento similar, só que mais novo, ainda não envelhecido e deteriorado pelo uso. As obras na escola foram sempre poucas e de recurso. Naquela sala, apegado à velha parede, lá estava o mesmo quadro das suas memórias, bocadinhos de giz e um apagador, esquecido da sua real função, de tão desgastado que estava. Ao fundo, os armários de madeira originais, com uma chapazinha no cimo, com uns escritos indecifráveis, gingavam e chiavam, resmungões na sua senilidade, ao mínimo encontrão. Que os respeitassem na sua provecta idade, que bem o mereciam. Aqui e além uma mancha escura no soalho testemunhava infiltrações frequentes e indesejáveis. Era a imagem de marca do país do sul.
Sinal de modernidade apenas um computador e uma impressora. A vanguarda da tecnologia tinha arribado ali, com pompa e circunstância. Um para tantos...
Ele, o professor, procurara sinais do investimento tão proclamado no ciclo em que leccionava: o primeiro. Surgiram-lhe vagos rumores de vagas preocupações, lá na década de noventa, sem efeito prático manifesto e visível.
Reformas no ensino, essas sim, foram muitas, tantas que já lhes perdera a conta, Tantas quantas os ministros, e também sem efeito prático e visível. Ele, o professor, conhecia os segredos do insucesso. O desinvestimento era sem dúvida um deles. Instalações e equipamentos condignos, actuais, adequados à função, estética e funcionalmente atraentes, nem vê-los. Os fundos estruturais a tal destinados eram voláteis, sumiram, desviaram-se, perdidos em não se sabe que ínvios desatinos. O diálogo franco, produtivo, com os verdadeiros especialistas da educação, os professores, de facto nunca existiu. Ouviram-se os papás, sempre interventivos, à procura de mais umas horas de encarceramento coercivo dos seus descendentes, à cata de mais uns momentos de desresponsabilização das suas obrigações paternais. Ouviram-se economistas e outros notáveis fazer alarde do seu saber enciclopédico. Ouviram-se comentadores, outros oradores e escribas, opinando em catadupa em discursos feitos por encomenda dos seus reverendos donos. Mas os professores, esses, não se ouviram, pois as verdades podem ser tremendamente embaraçosas. O chumbo foi considerado um crime e, por consequência, camuflada e diplomaticamente proibido. O facilitismo foi institucionalizado por decreto. Ao nono ano, os chumbos, esses, desabaram fragorosamente sobre o país do sul, surpreendendo todos, menos os professores.

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