quarta-feira, agosto 03, 2005

A CASA DA FRONTEIRA

Era um edifício deveras singular. Começava por estar posicionado exactamente sobre a linha da fronteira. Era uma linha imaginária, mas implacável. Rectilínea, não abdicava desse estatuto. Cortava a direito, alheia à inexorabilidade das consequências que ditava.
Metade da casa, a parte norte, mostrava um exterior agradável, com fachadas pintadas numa ténue tonalidade amarelada, uniforme, atestando a sua qualidade e a sua recente aplicação. Janelas de alumínio lacado e vidraças duplas emparceiravam com varandas pintadas de verde, também uniforme e com idêntica atestação. Um viçoso relvado, bem aparado, entremeado com tufos floridos, de cores perfeitamentamente integradas, predispunha-o como excelente local de lazer e óptima antecâmara para uma privacidade sem grades, para um recolhimento sem medos.
A outra metade, em perfeita simetria, era a sua antítese. As paredes reflectiam os maus tratos do tempo e o desmazelo dos homens. Pedaços do revestimento tinham desaparecido, colocando a nu inestéticas feridas, manchas entre outras manchas de um tom baço, desmaiado, cuja original tonalidade era indetectável. As janelas, de guilhotina, certamente há muito que não eram abertas, pois ameaçavam desconjuntar-se a qualquer momento. Vidraças rachadas, suspensas na caixilharia por artes do demo ou de um piedoso acaso, enquadravam-se perfeitamente na imagem de declínio generalizado. As varandas, envergonhadas da sua nudez, coravam em tons aleatórios de um ferruginoso ocre.
O jardim, esse, não existia. A vegetação, descontrolada, crescia em selvagem obediência às leis naturais. Notava-se a ausência de mão humana, que colocasse nexo, ordem, criatividade, na balbúrdia reinante. Sinais de presença humana, apenas um carreiro que apontava à porta degradada, de onde as ervas tinham sido arredadas pela regularidade de um qualquer pisotear.
O Monge - Parte I

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